Cidade
do Vaticano (RV) - Segue, na íntegra, a
Exortação Apostólica Evangelii Gaudium do Papa Francisco.
AO EPISCOPADO, AO CLERO
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E AOS FIÉIS LEIGOS
SOBRE O ANÚNCIO DO EVANGELHO
NO MUNDO ATUAL
1. A ALEGRIA DO EVANGELHO enche o coração e a vida inteira daqueles que
se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do
pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo,
renasce sem cessar a alegria. Quero, com esta Exortação, dirigir-me aos fiéis
cristãos a fim de os convidar para uma nova etapa evangelizadora marcada por
esta alegria e indicar caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos.
1. Alegria que se renova e comunica
2. O grande risco do mundo actual, com sua múltipla
e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do
coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais,
da consciência isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios
interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já
não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem
fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco, certo e permanente, que
correm também os crentes. Muitos caem nele, transformando-se em pessoas
ressentidas, queixosas, sem vida. Esta não é a escolha duma vida digna e plena,
este não é o desígnio que Deus tem para nós, esta não é a vida no Espírito que
jorra do coração de Cristo ressuscitado.
3. Convido todo o cristão, em qualquer lugar e
situação que se encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus
Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de O
procurar dia a dia sem cessar. Não há motivo para alguém poder pensar que este
convite não lhe diz respeito, já que «da alegria trazida pelo Senhor ninguém é
excluído». Quem arrisca, o Senhor não o desilude; e, quando alguém dá um
pequeno passo em direcção a Jesus, descobre que Ele já aguardava de braços
abertos a sua chegada. Este é o momento para dizer a Jesus Cristo: «Senhor,
deixei-me enganar, de mil maneiras fugi do vosso amor, mas aqui estou novamente
para renovar a minha aliança convosco. Preciso de Vós. Resgatai-me de novo,
Senhor; aceitai-me mais uma vez nos vossos braços redentores». Como nos faz bem
voltar para Ele, quando nos perdemos! Insisto uma vez mais: Deus nunca Se cansa
de perdoar, somos nós que nos cansamos de pedir a sua misericórdia. Aquele que
nos convidou a perdoar «setenta vezes sete» (Mt 18, 22) dá-nos o
exemplo: Ele perdoa setenta vezes sete. Volta uma vez e outra a carregar-nos
aos seus ombros. Ninguém nos pode tirar a dignidade que este amor infinito e
inabalável nos confere. Ele permite-nos levantar a cabeça e recomeçar, com uma
ternura que nunca nos defrauda e sempre nos pode restituir a alegria. Não
fujamos da ressurreição de Jesus; nunca nos demos por mortos, suceda o que
suceder. Que nada possa mais do que a sua vida que nos impele para diante!
4. Os livros do Antigo Testamento preanunciaram a
alegria da salvação, que havia de tornar-se superabundante nos tempos
messiânicos. O profeta Isaías dirige-se ao Messias esperado, saudando-O com
regozijo: «Multiplicaste a alegria, aumentaste o júbilo» (9, 2). E anima os
habitantes de Sião a recebê-Lo com cânticos: «Exultai de alegria!» (12, 6). A
quem já O avistara no horizonte, o profeta convida-o a tornar-se mensageiro
para os outros: «Sobe a um alto monte, arauto de Sião! Grita com voz forte,
arauto de Jerusalém» (40, 9). A criação inteira participa nesta alegria da
salvação: «Cantai, ó céus! Exulta de alegria, ó terra! Rompei em exclamações, ó
montes! Na verdade, o Senhor consola o seu povo e se compadece dos
desamparados» (49, 13).
Zacarias, vendo o dia do Senhor, convida a vitoriar
o Rei que chega «humilde, montado num jumento»: «Exulta de alegria, filha de
Sião! Solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti.
Ele é justo e vitorioso» (9, 9). Mas o convite mais tocante talvez seja o do
profeta Sofonias, que nos mostra o próprio Deus como um centro irradiante de
festa e de alegria, que quer comunicar ao seu povo este júbilo salvífico.
Enche-me de vida reler este texto: «O Senhor, teu Deus, está no meio de ti como
poderoso salvador! Ele exulta de alegria por tua causa, pelo seu amor te
renovará. Ele dança e grita de alegria por tua causa» (3, 17).
É a alegria que se vive no meio das pequenas coisas
da vida quotidiana, como resposta ao amoroso convite de Deus nosso Pai: «Meu
filho, se tens com quê, trata-te bem (...). Não te prives da felicidade
presente» (Sir 14, 11.14). Quanta ternura paterna se vislumbra por
detrás destas palavras!
5. O Evangelho, onde resplandece gloriosa a Cruz de
Cristo, convida insistentemente à alegria. Apenas alguns exemplos: «Alegra-te»
é a saudação do anjo a Maria (Lc 1, 28). A visita de Maria a Isabel
faz com que João salte de alegria no ventre de sua mãe (cf. Lc 1,
41). No seu cântico, Maria proclama: «O meu espírito se alegra em Deus, meu
Salvador» (Lc 1, 47). E, quando Jesus começa o seu ministério, João
exclama: «Esta é a minha alegria! E tornou-se completa!» (Jo 3,
29). O próprio Jesus «estremeceu de alegria sob a acção do Espírito Santo» (Lc 10,
21). A sua mensagem é fonte de alegria: «Manifestei-vos estas coisas, para que
esteja em vós a minha alegria, e a vossa alegria seja completa» (Jo 15,
11). A nossa alegria cristã brota da fonte do seu coração transbordante. Ele
promete aos seus discípulos: «Vós haveis de estar tristes, mas a vossa tristeza
há-de converter-se em alegria» (Jo 16, 20). E insiste: «Eu hei-de
ver-vos de novo! Então, o vosso coração há-de alegrar-se e ninguém vos poderá
tirar a vossa alegria» (Jo 16, 22). Depois, ao verem-No
ressuscitado, «encheram-se de alegria» (Jo 20, 20). O livro dos
Actos dos Apóstolos conta que, na primitiva comunidade, «tomavam o alimento com
alegria» (2, 46). Por onde passaram os discípulos, «houve grande alegria» (8,
8); e eles, no meio da perseguição, «estavam cheios de alegria» (13, 52). Um
eunuco, recém-baptizado, «seguiu o seu caminho cheio de alegria» (8, 39); e o
carcereiro «entregou-se, com a família, à alegria de ter acreditado em Deus»
(16, 34). Porque não havemos de entrar, também nós, nesta torrente de alegria?
6. Há cristãos que parecem ter escolhido viver uma Quaresma sem Páscoa.
Reconheço, porém, que a alegria não se vive da mesma maneira em todas as etapas
e circunstâncias da vida, por vezes muito duras. Adapta-se e transforma-se, mas
sempre permanece pelo menos como um feixe de luz que nasce da certeza pessoal
de, não obstante o contrário, sermos infinitamente amados. Compreendo as
pessoas que se vergam à tristeza por causa das graves dificuldades que têm de
suportar, mas aos poucos é preciso permitir que a alegria da fé comece a
despertar, como uma secreta mas firme confiança, mesmo no meio das piores
angústias: «A paz foi desterrada da minha alma, já nem sei o que é a felicidade
(…). Isto, porém, guardo no meu coração; por isso, mantenho a esperança. É que
a misericórdia do Senhor não acaba, não se esgota a sua compaixão. Cada manhã
ela se renova; é grande a tua fidelidade. (...) Bom é esperar em silêncio a
salvação do Senhor» (Lm 3, 17.21-23.26).
7. A tentação apresenta-se, frequentemente, sob
forma de desculpas e queixas, como se tivesse de haver inúmeras condições para
ser possível a alegria. Habitualmente isto acontece, porque «a sociedade
técnica teve a possibilidade de multiplicar as ocasiões de prazer; no entanto
ela encontra dificuldades grandes no engendrar também a alegria». Posso dizer
que as alegrias mais belas e espontâneas, que vi ao longo da minha vida, são as
alegrias de pessoas muito pobres que têm pouco a que se agarrar. Recordo também
a alegria genuína daqueles que, mesmo no meio de grandes compromissos
profissionais, souberam conservar um coração crente, generoso e simples. De
várias maneiras, estas alegrias bebem na fonte do amor maior, que é o de Deus,
a nós manifestado em Jesus Cristo. Não me cansarei de repetir estas palavras de
Bento XVI que nos levam ao centro do Evangelho: «Ao início do ser cristão, não
há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento,
com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo
decisivo».
8. Somente graças a este encontro – ou reencontro –
com o amor de Deus, que se converte em amizade feliz, é que somos resgatados da
nossa consciência isolada e da auto-referencialidade. Chegamos a ser plenamente
humanos, quando somos mais do que humanos, quando permitimos a Deus que nos
conduza para além de nós mesmos a fim de alcançarmos o nosso ser mais
verdadeiro. Aqui está a fonte da acção evangelizadora. Porque, se alguém
acolheu este amor que lhe devolve o sentido da vida, como é que pode conter o
desejo de o comunicar aos outros?
2. A doce e reconfortante alegria de
evangelizar
9. O bem tende sempre a comunicar-se. Toda a
experiência autêntica de verdade e de beleza procura, por si mesma, a sua
expansão; e qualquer pessoa que viva uma libertação profunda adquire maior
sensibilidade face às necessidades dos outros. E, uma vez comunicado, o bem
radica-se e desenvolve-se. Por isso, quem deseja viver com dignidade e em
plenitude, não tem outro caminho senão reconhecer o outro e buscar o seu bem.
Assim, não nos deveriam surpreender frases de São Paulo como estas: «O amor de
Cristo nos absorve completamente» (2 Cor 5, 14); «ai de mim, se eu
não evangelizar!» (1 Cor 9, 16).
10. A proposta é viver a um nível superior, mas não
com menor intensidade: «Na doação, a vida se fortalece; e se enfraquece no
comodismo e no isolamento. De facto, os que mais desfrutam da vida são os que
deixam a segurança da margem e se apaixonam pela missão de comunicar a vida aos
demais». Quando a Igreja faz apelo ao compromisso evangelizador, não faz mais
do que indicar aos cristãos o verdadeiro dinamismo da realização pessoal: «Aqui
descobrimos outra profunda lei da realidade: “A vida se alcança e amadurece à
medida que é entregue para dar vida aos outros”. Isto é, definitivamente, a
missão». Consequentemente, um evangelizador não deveria ter constantemente uma
cara de funeral. Recuperemos e aumentemos o fervor de espírito, «a suave e
reconfortante alegria de evangelizar, mesmo quando for preciso semear com
lágrimas! (...) E que o mundo do nosso tempo, que procura ora na angústia ora
com esperança, possa receber a Boa Nova dos lábios, não de evangelizadores
tristes e descoroçoados, impacientes ou ansiosos, mas sim de ministros do
Evangelho cuja vida irradie fervor, pois foram quem recebeu primeiro em si a
alegria de Cristo».
Uma eterna novidade
11. Um anúncio renovado proporciona aos crentes,
mesmo tíbios ou não praticantes, uma nova alegria na fé e uma fecundidade
evangelizadora. Na realidade, o seu centro e a sua essência são sempre o mesmo:
o Deus que manifestou o seu amor imenso em Cristo morto e ressuscitado. Ele
torna os seus fiéis sempre novos; ainda que sejam idosos, «renovam as suas
forças. Têm asas como a águia, correm sem se cansar, marcham sem desfalecer» (Is 40,
31). Cristo é a «Boa-Nova de valor eterno» (Ap 14, 6), sendo «o
mesmo ontem, hoje e pelos séculos» (Heb 13, 8), mas a sua riqueza e
a sua beleza são inesgotáveis. Ele é sempre jovem, e fonte de constante
novidade. A Igreja não cessa de se maravilhar com a «profundidade de riqueza,
de sabedoria e de ciência de Deus» (Rm 11, 33). São João da Cruz
dizia: «Esta espessura de sabedoria e ciência de Deus é tão profunda e imensa,
que, por mais que a alma saiba dela, sempre pode penetrá-la mais
profundamente». Ou ainda, como afirmava Santo Ireneu: «Na sua vinda, [Cristo]
trouxe consigo toda a novidade». Com a sua novidade, Ele pode sempre renovar a
nossa vida e a nossa comunidade, e a proposta cristã, ainda que atravesse
períodos obscuros e fraquezas eclesiais, nunca envelhece. Jesus Cristo pode
romper também os esquemas enfadonhos em que pretendemos aprisioná-Lo, e
surpreende-nos com a sua constante criatividade divina. Sempre que procuramos
voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, despontam novas
estradas, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais mais
eloquentes, palavras cheias de renovado significado para o mundo actual. Na
realidade, toda a acção evangelizadora autêntica é sempre «nova».
12. Embora esta missão nos exija uma entrega
generosa, seria um erro considerá-la como uma heróica tarefa pessoal, dado que
ela é, primariamente e acima de tudo o que possamos sondar e compreender, obra
de Deus. Jesus é «o primeiro e o maior evangelizador». Em qualquer forma de
evangelização, o primado é sempre de Deus, que quis chamar-nos para cooperar
com Ele e impelir-nos com a força do seu Espírito. A verdadeira novidade é
aquela que o próprio Deus misteriosamente quer produzir, aquela que Ele
inspira, aquela que Ele provoca, aquela que Ele orienta e acompanha de mil e
uma maneiras. Em toda a vida da Igreja, deve-se sempre manifestar que a
iniciativa pertence a Deus, «porque Ele nos amou primeiro» (1 Jo 4,
19) e é «só Deus que faz crescer» (1 Cor 3, 7). Esta convicção
permite-nos manter a alegria no meio duma tarefa tão exigente e desafiadora que
ocupa inteiramente a nossa vida. Pede-nos tudo, mas ao mesmo tempo dá-nos tudo.
13. E também não deveremos entender a novidade
desta missão como um desenraizamento, como um esquecimento da história viva que
nos acolhe e impele para diante. A memória é uma dimensão da nossa fé, que, por
analogia com a memória de Israel, poderíamos chamar «deuteronómica». Jesus
deixa-nos a Eucaristia como memória quotidiana da Igreja, que nos introduz cada
vez mais na Páscoa (cf. Lc 22, 19). A alegria evangelizadora
refulge sempre sobre o horizonte da memória agradecida: é uma graça que
precisamos de pedir. Os Apóstolos nunca mais esqueceram o momento em que Jesus
lhes tocou o coração: «Eram as quatro horas da tarde» (Jo 1, 39). A
memória faz-nos presente, juntamente com Jesus, uma verdadeira «nuvem de
testemunhas» (Heb 12, 1). De entre elas, distinguem-se algumas
pessoas que incidiram de maneira especial para fazer germinar a nossa alegria
crente: «Recordai-vos dos vossos guias, que vos pregaram a palavra de Deus» (Heb 13,
7). Às vezes, trata-se de pessoas simples e próximas de nós, que nos iniciaram
na vida da fé: «Trago à memória a tua fé sem fingimento, que se encontrava já
na tua avó Lóide e na tua mãe Eunice» (2 Tm 1, 5). O crente é,
fundamentalmente, «uma pessoa que faz memória».
3. A nova evangelização para a
transmissão da fé
14. À escuta do Espírito, que nos ajuda a
reconhecer comunitariamente os sinais dos tempos, celebrou-se de 7 a 28 de
Outubro de 2012 a XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, sobre o
tema A nova evangelização para a transmissão da fé cristã. Lá foi
recordado que a nova evangelização interpela a todos, realizando-se
fundamentalmente em três âmbitos. Em primeiro lugar, mencionamos o âmbito
da pastoral ordinária, «animada pelo fogo do Espírito a fim de
incendiar os corações dos fiéis que frequentam regularmente a comunidade,
reunindo-se no dia do Senhor, para se alimentarem da sua Palavra e do Pão de
vida eterna». Devem ser incluídos também neste âmbito os fiéis que conservam
uma fé católica intensa e sincera, exprimindo-a de diversos modos, embora não
participem frequentemente no culto. Esta pastoral está orientada para o
crescimento dos crentes, a fim de corresponderem cada vez melhor e com toda a
sua vida ao amor de Deus.
Em segundo lugar, lembramos o âmbito das «pessoas
baptizadas que, porém, não vivem as exigências do Baptismo»,
não sentem uma pertença cordial à Igreja e já não experimentam a consolação da
fé. Mãe sempre solícita, a Igreja esforça-se para que elas vivam uma conversão
que lhes restitua a alegria da fé e o desejo de se comprometerem com o
Evangelho.
Por fim, frisamos que a evangelização está
essencialmente relacionada com a proclamação do Evangelho àqueles que
não conhecem Jesus Cristo ou que sempre O recusaram. Muitos deles buscam
secretamente a Deus, movidos pela nostalgia do seu rosto, mesmo em países de
antiga tradição cristã. Todos têm o direito de receber o Evangelho. Os cristãos
têm o dever de o anunciar, sem excluir ninguém, e não como quem impõe uma nova
obrigação, mas como quem partilha uma alegria, indica um horizonte estupendo,
oferece um banquete apetecível. A Igreja não cresce por proselitismo, mas «por
atracção».
15. João Paulo II convidou-nos a reconhecer que
«não se pode perder a tensão para o anúncio» àqueles que estão longe de Cristo,
«porque esta é a tarefa primária da Igreja». A actividade
missionária «ainda hoje representa o máximo desafio para a
Igreja» e «a causa missionária deve ser (…) a primeira de
todas as causas». Que sucederia se tomássemos realmente a sério estas palavras?
Simplesmente reconheceríamos que a acção missionária é o paradigma de
toda a obra da Igreja. Nesta linha, os Bispos latino-americanos afirmaram
que «não podemos ficar tranquilos, em espera passiva, em nossos templos», sendo
necessário passar «de uma pastoral de mera conservação para uma pastoral
decididamente missionária». Esta tarefa continua a ser a fonte das maiores
alegrias para a Igreja: «Haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se
converte, do que por noventa e nove justos que não necessitam de conversão» (Lc 15,
7).
A proposta desta Exortação e seus
contornos
16. Com prazer, aceitei o convite dos Padres
sinodais para redigir esta Exortação. Para o efeito, recolho a riqueza dos
trabalhos do Sínodo; consultei também várias pessoas e pretendo, além disso,
exprimir as preocupações que me movem neste momento concreto da obra
evangelizadora da Igreja. Os temas relacionados com a evangelização no mundo
actual, que se poderiam desenvolver aqui, são inumeráveis. Mas renunciei a
tratar detalhadamente esta multiplicidade de questões que devem ser objecto de
estudo e aprofundamento cuidadoso. Penso, aliás, que não se deve esperar do
magistério papal uma palavra definitiva ou completa sobre todas as questões que
dizem respeito à Igreja e ao mundo. Não convém que o Papa substitua os
episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que sobressaem
nos seus territórios. Neste sentido, sinto a necessidade de proceder a uma
salutar «descentralização».
17. Aqui escolhi propor algumas directrizes que
possam encorajar e orientar, em toda a Igreja, uma nova etapa evangelizadora,
cheia de ardor e dinamismo. Neste quadro e com base na doutrina da Constituição
dogmática Lumen gentium, decidi, entre outros temas, de me deter
amplamente sobre as seguintes questões:
a) A reforma da Igreja em saída missionária.
b) As tentações dos agentes pastorais.
c) A Igreja vista como a totalidade do povo de Deus
que evangeliza.
d) A homilia e a sua preparação.
e) A inclusão social dos pobres.
f) A paz e o diálogo social.
g) As motivações espirituais para o compromisso
missionário.
18. Demorei-me nestes temas, desenvolvendo-os dum
modo que talvez possa parecer excessivo. Mas não o fiz com a intenção de
oferecer um tratado, mas só para mostrar a relevante incidência prática destes
assuntos na missão actual da Igreja. De facto, todos eles ajudam a delinear um
preciso estilo evangelizador, que convido a assumir em qualquer
actividade que se realize. E, desta forma, podemos assumir, no meio do
nosso trabalho diário, esta exortação da Palavra de Deus: «Alegrai-vos sempre
no Senhor! De novo vos digo: alegrai-vos!» (Fl 4, 4).
Capítulo I
A TRANSFORMAÇÃO MISSIONÁRIA DA IGREJA
19. A evangelização obedece ao mandato missionário
de Jesus: «Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos, baptizando-os em nome
do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos
tenho mandado» (Mt 28, 19-20). Nestes versículos, aparece o momento
em que o Ressuscitado envia os seus a pregar o Evangelho em todos os tempos e
lugares, para que a fé n’Ele se estenda a todos os cantos da terra.
1. Uma Igreja «em saída»
20. Na Palavra de Deus, aparece constantemente este
dinamismo de «saída», que Deus quer provocar nos crentes. Abraão aceitou a
chamada para partir rumo a uma nova terra (cf. Gn 12, 1-3).
Moisés ouviu a chamada de Deus: «Vai; Eu te envio» (Ex 3, 10), e
fez sair o povo para a terra prometida (cf. Ex 3, 17). A
Jeremias disse: «Irás aonde Eu te enviar» (Jr 1, 7). Naquele «ide»
de Jesus, estão presentes os cenários e os desafios sempre novos da missão
evangelizadora da Igreja, e hoje todos somos chamados a esta nova «saída»
missionária. Cada cristão e cada comunidade há-de discernir qual é o caminho
que o Senhor lhe pede, mas todos somos convidados a aceitar esta chamada: sair
da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que
precisam da luz do Evangelho.
21. A alegria do Evangelho, que enche a vida da
comunidade dos discípulos, é uma alegria missionária. Experimentam-na os
setenta e dois discípulos, que voltam da missão cheios de alegria (cf. Lc 10,
17). Vive-a Jesus, que exulta de alegria no Espírito Santo e louva o Pai,
porque a sua revelação chega aos pobres e aos pequeninos (cf. Lc 10,
21). Sentem-na, cheios de admiração, os primeiros que se convertem no
Pentecostes, ao ouvir «cada um na sua própria língua» (Act 2, 6) a
pregação dos Apóstolos. Esta alegria é um sinal de que o Evangelho foi anunciado
e está a frutificar. Mas contém sempre a dinâmica do êxodo e do dom, de sair de
si mesmo, de caminhar e de semear sempre de novo, sempre mais além. O Senhor
diz: «Vamos para outra parte, para as aldeias vizinhas, a fim de pregar aí,
pois foi para isso que Eu vim» (Mc 1, 38). Ele, depois de lançar a
semente num lugar, não se demora lá a explicar melhor ou a cumprir novos
sinais, mas o Espírito leva-O a partir para outras aldeias.
22. A Palavra possui, em si mesma, uma tal
potencialidade, que não a podemos prever. O Evangelho fala da semente que, uma
vez lançada à terra, cresce por si mesma, inclusive quando o agricultor dorme
(cf. Mc 4, 26-29). A Igreja deve aceitar esta liberdade
incontrolável da Palavra, que é eficaz a seu modo e sob formas tão variadas que
muitas vezes nos escapam, superando as nossas previsões e quebrando os nossos
esquemas.
23. A intimidade da Igreja com Jesus é uma
intimidade itinerante, e a comunhão «reveste essencialmente a forma de comunhão
missionária». Fiel ao modelo do Mestre, é vital que hoje a Igreja saia para
anunciar o Evangelho a todos, em todos os lugares, em todas as ocasiões, sem
demora, sem repugnâncias e sem medo. A alegria do Evangelho é para todo o povo,
não se pode excluir ninguém; assim foi anunciada pelo anjo aos pastores de
Belém: «Não temais, pois anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo
o povo» (Lc 2, 10). O Apocalipse fala de «uma Boa-Nova de valor
eterno para anunciar aos habitantes da terra: a todas as nações,
tribos, línguas e povos» (Ap 14, 6).
«Primeirear», envolver-se,
acompanhar, frutificar e festejar
24. A Igreja «em saída» é a comunidade de
discípulos missionários que «primeireiam», que se envolvem, que acompanham, que
frutificam e festejam. Primeireiam – desculpai o neologismo –,
tomam a iniciativa! A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a
iniciativa, precedeu-a no amor (cf. 1 Jo 4, 10), e, por isso,
ela sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro,
procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os
excluídos. Vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia, fruto de ter
experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua força difusiva. Ousemos um
pouco mais no tomar a iniciativa! Como consequência, a Igreja sabe
«envolver-se». Jesus lavou os pés aos seus discípulos. O Senhor envolve-Se e
envolve os seus, pondo-Se de joelhos diante dos outros para os lavar; mas, logo
a seguir, diz aos discípulos: «Sereis felizes se o puserdes em prática» (Jo 13,
17). Com obras e gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos
outros, encurta as distâncias, abaixa-se – se for necessário – até à humilhação
e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo. Os
evangelizadores contraem assim o «cheiro de ovelha», e estas escutam a sua voz.
Em seguida, a comunidade evangelizadora dispõe-se a «acompanhar». Acompanha a
humanidade em todos os seus processos, por mais duros e demorados que sejam.
Conhece as longas esperas e a suportação apostólica. A evangelização patenteia
muita paciência, e evita deter-se a considerar as limitações. Fiel ao dom do
Senhor, sabe também «frutificar». A comunidade evangelizadora mantém-se atenta
aos frutos, porque o Senhor a quer fecunda. Cuida do trigo e não perde a paz
por causa do joio. O semeador, quando vê surgir o joio no meio do trigo, não
tem reacções lastimosas ou alarmistas. Encontra o modo para fazer com que a
Palavra se encarne numa situação concreta e dê frutos de vida nova, apesar de
serem aparentemente imperfeitos ou defeituosos. O discípulo sabe oferecer a
vida inteira e jogá-la até ao martírio como testemunho de Jesus Cristo, mas o
seu sonho não é estar cheio de inimigos, mas antes que a Palavra seja acolhida
e manifeste a sua força libertadora e renovadora. Por fim, a comunidade
evangelizadora jubilosa sabe sempre «festejar»: celebra e festeja cada pequena
vitória, cada passo em frente na evangelização. No meio desta exigência diária
de fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa torna-se beleza na liturgia. A
Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia, que é também
celebração da actividade evangelizadora e fonte dum renovado impulso para se
dar.
2. Pastoral em conversão
25. Não ignoro que hoje os documentos não suscitam
o mesmo interesse que noutras épocas, acabando rapidamente esquecidos. Apesar
disso sublinho que, aquilo que pretendo deixar expresso aqui, possui um
significado programático e tem consequências importantes. Espero que todas as
comunidades se esforcem por actuar os meios necessários para avançar no caminho
duma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como
estão. Neste momento, não nos serve uma «simples administração». Constituamo-nos
em «estado permanente de missão», em todas as regiões da terra.
26. Paulo VI convidou a alargar o apelo à renovação
de modo que ressalte, com força, que não se dirige apenas aos indivíduos, mas à
Igreja inteira. Lembremos este texto memorável, que não perdeu a sua força
interpeladora: «A Igreja deve aprofundar a consciência de si mesma, meditar
sobre o seu próprio mistério (...). Desta consciência esclarecida e operante
deriva espontaneamente um desejo de comparar a imagem ideal da Igreja, tal como
Cristo a viu, quis e amou, ou seja, como sua Esposa santa e imaculada (Ef 5,
27), com o rosto real que a Igreja apresenta hoje. (…) Em consequência disso,
surge uma necessidade generosa e quase impaciente de renovação, isto é, de
emenda dos defeitos, que aquela consciência denuncia e rejeita, como se fosse
um exame interior ao espelho do modelo que Cristo nos deixou de Si
mesmo».
O Concílio Vaticano II apresentou a conversão
eclesial como a abertura a uma reforma permanente de si mesma por fidelidade a
Jesus Cristo: «Toda a renovação da Igreja consiste essencialmente numa maior
fidelidade à própria vocação. (…) A Igreja peregrina é chamada por Cristo a
esta reforma perene. Como instituição humana e terrena, a Igreja necessita
perpetuamente desta reforma».
Há estruturas eclesiais que podem chegar a
condicionar um dinamismo evangelizador; de igual modo, as boas estruturas
servem quando há uma vida que as anima, sustenta e avalia. Sem vida nova e
espírito evangélico autêntico, sem «fidelidade da Igreja à própria vocação»,
toda e qualquer nova estrutura se corrompe em pouco tempo.
Uma renovação eclesial
inadiável
27. Sonho com uma opção missionária capaz de
transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e
toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização
do mundo actual que à auto-preservação. A reforma das estruturas, que a
conversão pastoral exige, só se pode entender neste sentido: fazer com que
todas elas se tornem mais missionárias, que a pastoral ordinária em todas as
suas instâncias seja mais comunicativa e aberta, que coloque os agentes
pastorais em atitude constante de «saída» e, assim, favoreça a resposta
positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece a sua amizade. Como dizia João
Paulo II aos Bispos da Oceânia, «toda a renovação na Igreja há-de ter como alvo
a missão, para não cair vítima duma espécie de introversão eclesial».
28. A paróquia não é uma estrutura caduca;
precisamente porque possui uma grande plasticidade, pode assumir formas muito
diferentes que requerem a docilidade e a criatividade missionária do Pastor e
da comunidade. Embora não seja certamente a única instituição evangelizadora,
se for capaz de se reformar e adaptar constantemente, continuará a ser «a
própria Igreja que vive no meio das casas dos seus filhos e das suas filhas».
Isto supõe que esteja realmente em contacto com as famílias e com a vida do
povo, e não se torne uma estrutura complicada, separada das pessoas, nem um
grupo de eleitos que olham para si mesmos. A paróquia é presença eclesial no
território, âmbito para a escuta da Palavra, o crescimento da vida cristã, o
diálogo, o anúncio, a caridade generosa, a adoração e a celebração. Através de
todas as suas actividades, a paróquia incentiva e forma os seus membros para
serem agentes da evangelização. É comunidade de comunidades, santuário onde os
sedentos vão beber para continuarem a caminhar, e centro de constante envio
missionário. Temos, porém, de reconhecer que o apelo à revisão e renovação das
paróquias ainda não deu suficientemente fruto, tornando-se ainda mais próximas
das pessoas, sendo âmbitos de viva comunhão e participação e orientando-se
completamente para a missão.
29. As outras instituições eclesiais, comunidades
de base e pequenas comunidades, movimentos e outras formas de associação são
uma riqueza da Igreja que o Espírito suscita para evangelizar todos os
ambientes e sectores. Frequentemente trazem um novo ardor evangelizador e uma
capacidade de diálogo com o mundo que renovam a Igreja. Mas é muito salutar que
não percam o contacto com esta realidade muito rica da paróquia local e que se
integrem de bom grado na pastoral orgânica da Igreja particular. Esta
integração evitará que fiquem só com uma parte do Evangelho e da Igreja, ou que
se transformem em nómades sem raízes.
30. Cada Igreja particular, porção da Igreja
Católica sob a guia do seu Bispo, está, também ela, chamada à conversão
missionária. Ela é o sujeito primário da evangelização, enquanto é a
manifestação concreta da única Igreja num lugar da terra e, nela, «está
verdadeiramente presente e opera a Igreja de Cristo, una, santa, católica e
apostólica». É a Igreja encarnada num espaço concreto, dotada de todos os meios
de salvação dados por Cristo, mas com um rosto local. A sua alegria de
comunicar Jesus Cristo exprime-se tanto na sua preocupação por anunciá-Lo
noutros lugares mais necessitados, como numa constante saída para as periferias
do seu território ou para os novos âmbitos socioculturais. Procura estar sempre
onde fazem mais falta a luz e a vida do Ressuscitado. Para que este impulso
missionário seja cada vez mais intenso, generoso e fecundo, exorto também cada
uma das Igrejas particulares a entrar decididamente num processo de
discernimento, purificação e reforma.
31. O Bispo deve favorecer sempre a comunhão
missionária na sua Igreja diocesana, seguindo o ideal das primeiras comunidades
cristãs, em que os crentes tinham um só coração e uma só alma (cf. Act 4,
32) . Para isso, às vezes pôr-se-á à frente para indicar a estrada e sustentar
a esperança do povo, outras vezes manter-se-á simplesmente no meio de todos com
a sua proximidade simples e misericordiosa e, em certas circunstâncias, deverá
caminhar atrás do povo, para ajudar aqueles que se atrasaram e sobretudo porque
o próprio rebanho possui o olfacto para encontrar novas estradas. Na sua missão
de promover uma comunhão dinâmica, aberta e missionária, deverá estimular e
procurar o amadurecimento dos organismos de participação propostos pelo Código
de Direito Canónico e de outras formas de diálogo pastoral, com o
desejo de ouvir a todos, e não apenas alguns sempre prontos a lisonjeá-lo. Mas
o objectivo destes processos participativos não há-de ser principalmente a
organização eclesial, mas o sonho missionário de chegar a todos.
32. Dado que sou chamado a viver aquilo que peço
aos outros, devo pensar também numa conversão do papado. Compete-me, como Bispo
de Roma, permanecer aberto às sugestões tendentes a um exercício do meu
ministério que o torne mais fiel ao significado que Jesus Cristo pretendeu
dar-lhe e às necessidades actuais da evangelização. O Papa João Paulo II pediu
que o ajudassem a encontrar «uma forma de exercício do primado que, sem
renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra a uma
situação nova». Pouco temos avançado neste sentido. Também o papado e as
estruturas centrais da Igreja universal precisam de ouvir este apelo a uma
conversão pastoral. O Concílio Vaticano II afirmou que, à semelhança das
antigas Igrejas patriarcais, as conferências episcopais podem «aportar uma
contribuição múltipla e fecunda, para que o sentimento colegial leve a
aplicações concretas». Mas este desejo não se realizou plenamente, porque ainda
não foi suficientemente explicitado um estatuto das conferências episcopais que
as considere como sujeitos de atribuições concretas, incluindo alguma autêntica
autoridade doutrinal. Uma centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a
vida da Igreja e a sua dinâmica missionária.
33. A pastoral em chave missionária exige o abandono
deste cómodo critério pastoral: «fez-se sempre assim». Convido todos a serem
ousados e criativos nesta tarefa de repensar os objectivos, as estruturas, o
estilo e os métodos evangelizadores das respectivas comunidades. Uma
identificação dos fins, sem uma condigna busca comunitária dos meios para os
alcançar, está condenada a traduzir-se em mera fantasia. A todos exorto a
aplicarem, com generosidade e coragem, as orientações deste documento, sem
impedimentos nem receios. Importante é não caminhar sozinho, mas ter sempre em
conta os irmãos e, de modo especial, a guia dos Bispos, num discernimento
pastoral sábio e realista.
3. A partir do coração do Evangelho
34. Se pretendemos colocar tudo em chave
missionária, isso aplica-se também à maneira de comunicar a mensagem. No mundo
actual, com a velocidade das comunicações e a selecção interessada dos
conteúdos feita pelos mass-media, a mensagem que anunciamos corre
mais do que nunca o risco de aparecer mutilada e reduzida a alguns dos seus
aspectos secundários. Consequentemente, algumas questões que fazem parte da
doutrina moral da Igreja ficam fora do contexto que lhes dá sentido. O problema
maior ocorre quando a mensagem que anunciamos parece então identificada com
tais aspectos secundários, que, apesar de serem relevantes, por si sozinhos não
manifestam o coração da mensagem de Jesus Cristo. Portanto, convém ser
realistas e não dar por suposto que os nossos interlocutores conhecem o
horizonte completo daquilo que dizemos ou que eles podem relacionar o nosso
discurso com o núcleo essencial do Evangelho que lhe confere sentido, beleza e
fascínio.
35. Uma pastoral em chave missionária não está
obsessionada pela transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas que
se tentam impor à força de insistir. Quando se assume um objectivo pastoral e
um estilo missionário, que chegue realmente a todos sem excepções nem
exclusões, o anúncio concentra-se no essencial, no que é mais belo, mais
importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário. A proposta acaba
simplificada, sem com isso perder profundidade e verdade, e assim se torna mais
convincente e radiosa.
36. Todas as verdades reveladas procedem da mesma
fonte divina e são acreditadas com a mesma fé, mas algumas delas são mais
importantes por exprimir mais directamente o coração do Evangelho. Neste núcleo
fundamental, o que sobressai é a beleza do amor salvífico de Deus
manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado. Neste sentido, o Concílio
Vaticano II afirmou que «existe uma ordem ou “hierarquia” das verdades da
doutrina católica, já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é
diferente». Isto é válido tanto para os dogmas da fé como para o conjunto dos
ensinamentos da Igreja, incluindo a doutrina moral.
37. São Tomás de Aquino ensinava que, também na
mensagem moral da Igreja, há uma hierarquia nas virtudes e
acções que delas procedem. Aqui o que conta é, antes de mais nada, «a fé que
actua pelo amor» (Gal 5, 6). As obras de amor ao próximo são a
manifestação externa mais perfeita da graça interior do Espírito: «O elemento
principal da Nova Lei é a graça do Espírito Santo, que se manifesta através da
fé que opera pelo amor». Por isso afirma que, relativamente ao agir exterior, a
misericórdia é a maior de todas as virtudes: «Em si mesma, a misericórdia é a
maior das virtudes; na realidade, compete-lhe debruçar-se sobre os outros e – o
que mais conta – remediar as misérias alheias. Ora, isto é tarefa especialmente
de quem é superior; é por isso que se diz que é próprio de Deus usar de
misericórdia e é, sobretudo nisto, que se manifesta a sua omnipotência».
38. É importante tirar as consequências pastorais
desta doutrina conciliar, que recolhe uma antiga convicção da Igreja. Antes de
mais nada, deve-se dizer que, no anúncio do Evangelho, é necessário que haja
uma proporção adequada. Esta reconhece-se na frequência com que se mencionam
alguns temas e nas acentuações postas na pregação. Por exemplo, se um pároco,
durante um ano litúrgico, fala dez vezes sobre a temperança e apenas duas ou
três vezes sobre a caridade ou sobre a justiça, gera-se uma desproporção,
acabando obscurecidas precisamente aquelas virtudes que deveriam estar mais
presentes na pregação e na catequese. E o mesmo acontece quando se fala mais da
lei que da graça, mais da Igreja que de Jesus Cristo, mais do Papa que da
Palavra de Deus.
39. Tal como existe uma unidade orgânica entre as
virtudes que impede de excluir qualquer uma delas do ideal cristão, assim
também nenhuma verdade é negada. Não é preciso mutilar a integridade da
mensagem do Evangelho. Além disso, cada verdade entende-se melhor se a
colocarmos em relação com a totalidade harmoniosa da mensagem cristã: e, neste
contexto, todas as verdades têm a sua própria importância e iluminam-se
reciprocamente. Quando a pregação é fiel ao Evangelho, manifesta-se com clareza
a centralidade de algumas verdades e fica claro que a pregação moral cristã não
é uma ética estóica, é mais do que uma ascese, não é uma mera filosofia prática
nem um catálogo de pecados e erros. O Evangelho convida, antes de tudo, a
responder a Deus que nos ama e salva, reconhecendo-O nos outros e saindo de nós
mesmos para procurar o bem de todos. Este convite não há-de ser obscurecido em
nenhuma circunstância! Todas as virtudes estão ao serviço desta resposta de
amor. Se tal convite não refulge com vigor e fascínio, o edifício moral da
Igreja corre o risco de se tornar um castelo de cartas, sendo este o nosso pior
perigo; é que, então, não estaremos propriamente a anunciar o Evangelho, mas
algumas acentuações doutrinais ou morais, que derivam de certas opções
ideológicas. A mensagem correrá o risco de perder o seu frescor e já não ter «o
perfume do Evangelho».
4. A missão que se encarna nas
limitações humanas
40. A Igreja, que é discípula missionária, tem
necessidade de crescer na sua interpretação da Palavra revelada e na sua
compreensão da verdade. A tarefa dos exegetas e teólogos ajuda a «amadurecer o
juízo da Igreja». Embora de modo diferente, fazem-no também as outras ciências.
Referindo-se às ciências sociais, por exemplo, João Paulo II disse que a Igreja
presta atenção às suas contribuições «para obter indicações concretas que a
ajudem no cumprimento da sua missão de Magistério». Além disso, dentro da
Igreja, há inúmeras questões à volta das quais se indaga e reflecte com grande
liberdade. As diversas linhas de pensamento filosófico, teológico e pastoral,
se se deixam harmonizar pelo Espírito no respeito e no amor, podem fazer
crescer a Igreja, enquanto ajudam a explicitar melhor o tesouro riquíssimo da
Palavra. A quantos sonham com uma doutrina monolítica defendida sem nuances por
todos, isto poderá parecer uma dispersão imperfeita; mas a realidade é que tal
variedade ajuda a manifestar e desenvolver melhor os diversos aspectos da
riqueza inesgotável do Evangelho.
41. Ao mesmo tempo, as enormes e rápidas mudanças
culturais exigem que prestemos constante atenção ao tentar exprimir as verdades
de sempre numa linguagem que permita reconhecer a sua permanente novidade; é
que, no depósito da doutrina cristã, «uma coisa é a substância (...) e outra é
a formulação que a reveste». Por vezes, mesmo ouvindo uma linguagem totalmente
ortodoxa, aquilo que os fiéis recebem, devido à linguagem que eles mesmos
utilizam e compreendem, é algo que não corresponde ao verdadeiro Evangelho de
Jesus Cristo. Com a santa intenção de lhes comunicar a verdade sobre Deus e o
ser humano, nalgumas ocasiões, damos-lhes um falso deus ou um ideal humano que
não é verdadeiramente cristão. Deste modo, somos fiéis a uma formulação, mas
não transmitimos a substância. Este é o risco mais grave. Lembremo-nos de que
«a expressão da verdade pode ser multiforme. E a renovação das formas de
expressão torna-se necessária para transmitir ao homem de hoje a mensagem
evangélica no seu significado imutável».
42. Isto possui uma grande relevância no anúncio do
Evangelho, se temos verdadeiramente a peito fazer perceber melhor a sua beleza
e fazê-la acolher por todos. Em todo o caso, não poderemos jamais tornar os
ensinamentos da Igreja uma realidade facilmente compreensível e felizmente
apreciada por todos; a fé conserva sempre um aspecto de cruz, certa obscuridade
que não tira firmeza à sua adesão. Há coisas que se compreendem e apreciam só a
partir desta adesão que é irmã do amor, para além da clareza com que se possam
compreender as razões e os argumentos. Por isso, é preciso recordar-se de que
cada ensinamento da doutrina deve situar-se na atitude evangelizadora que
desperte a adesão do coração com a proximidade, o amor e o testemunho.
43. No seu constante discernimento, a Igreja pode
chegar também a reconhecer costumes próprios não directamente ligados ao núcleo
do Evangelho, alguns muito radicados no curso da história, que hoje já não são
interpretados da mesma maneira e cuja mensagem habitualmente não é percebida de
modo adequado. Podem até ser belos, mas agora não prestam o mesmo serviço à
transmissão do Evangelho. Não tenhamos medo de os rever! Da mesma forma, há
normas ou preceitos eclesiais que podem ter sido muito eficazes noutras épocas,
mas já não têm a mesma força educativa como canais de vida. São Tomás de Aquino
sublinhava que os preceitos dados por Cristo e pelos Apóstolos ao povo de Deus
«são pouquíssimos». E, citando Santo Agostinho, observava que os preceitos
adicionados posteriormente pela Igreja se devem exigir com moderação, «para não
tornar pesada a vida aos fiéis» nem transformar a nossa religião numa
escravidão, quando «a misericórdia de Deus quis que fosse livre». Esta
advertência, feita há vários séculos, tem uma actualidade tremenda. Deveria ser
um dos critérios a considerar, quando se pensa numa reforma da Igreja e da sua
pregação que permita realmente chegar a todos.
44. Aliás, tanto os Pastores como todos os fiéis
que acompanham os seus irmãos na fé ou num caminho de abertura a Deus não podem
esquecer aquilo que ensina, com muita clareza, o Catecismo da Igreja
Católica: «A imputabilidade e responsabilidade dum acto podem ser diminuídas,
e até anuladas, pela ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os
hábitos, as afeições desordenadas e outros factores psíquicos ou
sociais».
Portanto, sem diminuir o valor do ideal evangélico,
é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de
crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após dia. Aos sacerdotes,
lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da
misericórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível. Um pequeno
passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do
que a vida externamente correcta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar
sérias dificuldades. A todos deve chegar a consolação e o estímulo do amor
salvífico de Deus, que opera misteriosamente em cada pessoa, para além dos seus
defeitos e das suas quedas.
45. Vemos assim que o compromisso evangelizador se
move por entre as limitações da linguagem e das circunstâncias. Procura
comunicar cada vez melhor a verdade do Evangelho num contexto determinado, sem
renunciar à verdade, ao bem e à luz que pode dar quando a perfeição não é
possível. Um coração missionário está consciente destas limitações, fazendo-se
«fraco com os fracos (...) e tudo para todos» (1 Cor 9, 22). Nunca
se fecha, nunca se refugia nas próprias seguranças, nunca opta pela rigidez
auto-defensiva. Sabe que ele mesmo deve crescer na compreensão do Evangelho e
no discernimento das sendas do Espírito, e assim não renuncia ao bem possível,
ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada.
5. Uma mãe de coração aberto
46. A Igreja «em saída» é uma Igreja com as portas
abertas. Sair em direcção aos outros para chegar às periferias humanas não
significa correr pelo mundo sem direcção nem sentido. Muitas vezes é melhor
diminuir o ritmo, pôr de parte a ansiedade para olhar nos olhos e escutar, ou
renunciar às urgências para acompanhar quem ficou caído à beira do caminho. Às
vezes, é como o pai do filho pródigo, que continua com as portas abertas para,
quando este voltar, poder entrar sem dificuldade.
47. A Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta
do Pai. Um dos sinais concretos desta abertura é ter, por todo o lado, igrejas
com as portas abertas. Assim, se alguém quiser seguir uma moção do Espírito e
se aproximar à procura de Deus, não esbarrará com a frieza duma porta fechada.
Mas há outras portas que também não se devem fechar: todos podem participar de
alguma forma na vida eclesial, todos podem fazer parte da comunidade, e nem
sequer as portas dos sacramentos se deveriam fechar por uma razão qualquer.
Isto vale sobretudo quando se trata daquele sacramento que é a «porta»: o
Baptismo. A Eucaristia, embora constitua a plenitude da vida sacramental, não é
um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os
fracos. Estas convicções têm também consequências pastorais, que somos chamados
a considerar com prudência e audácia. Muitas vezes agimos como controladores da
graça e não como facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega; é a casa
paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fadigosa.
48. Se a Igreja inteira assume este dinamismo
missionário, há-de chegar a todos, sem excepção. Mas, a quem deveria
privilegiar? Quando se lê o Evangelho, encontramos uma orientação muito clara:
não tanto aos amigos e vizinhos ricos, mas sobretudo aos pobres e aos doentes,
àqueles que muitas vezes são desprezados e esquecidos, «àqueles que não têm com
que te retribuir» (Lc 14, 14). Não devem subsistir dúvidas nem
explicações que debilitem esta mensagem claríssima. Hoje e sempre, «os pobres
são os destinatários privilegiados do Evangelho», e a evangelização dirigida
gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem
rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os
deixemos jamais sozinhos!
49. Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida
de Jesus Cristo! Repito aqui, para toda a Igreja, aquilo que muitas vezes disse
aos sacerdotes e aos leigos de Buenos Aires: prefiro uma Igreja acidentada,
ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo
fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma
Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de
obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e
preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a
força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de
fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida. Mais do que o temor de
falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos
dão uma falsa protecção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis,
nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão
faminta e Jesus repete-nos sem cessar: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc 6,
37).
Texto
proveniente da página http://pt.radiovaticana.va/news/2013/11/26/primeira_exorta%C3%A7%C3%A3o_apost%C3%B3lica_do_papa_francisco/bra-750057
do
site da Rádio Vaticano
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