Capítulo II
NA CRISE DO COMPROMISSO COMUNITÁRIO
50. Antes de falar de algumas questões fundamentais
relativas à acção evangelizadora, convém recordar brevemente o contexto em que
temos de viver e agir. É habitual hoje falar-se dum «excesso de diagnóstico»,
que nem sempre é acompanhado por propostas resolutivas e realmente aplicáveis.
Por outro lado, também não nos seria de grande proveito um olhar puramente
sociológico, que tivesse a pretensão, com a sua metodologia, de abraçar toda a
realidade de maneira supostamente neutra e asséptica. O que quero oferecer
situa-se mais na linha dum discernimento evangélico. É o olhar do
discípulo missionário que «se nutre da luz e da força do Espírito Santo».
51. Não é função do Papa oferecer uma análise
detalhada e completa da realidade contemporânea, mas animo todas as comunidades
a «uma capacidade sempre vigilante de estudar os sinais dos tempos». Trata-se
duma responsabilidade grave, pois algumas realidades hodiernas, se não
encontrarem boas soluções, podem desencadear processos de desumanização tais
que será difícil depois retroceder. É preciso esclarecer o que pode ser um
fruto do Reino e também o que atenta contra o projecto de Deus. Isto implica
não só reconhecer e interpretar as moções do espírito bom e do espírito mau,
mas também – e aqui está o ponto decisivo – escolher as do espírito bom e
rejeitar as do espírito mau. Pressuponho as várias análises que ofereceram os
outros documentos do Magistério universal, bem como as propostas pelos
episcopados regionais e nacionais. Nesta Exortação, pretendo debruçar-me,
brevemente e numa perspectiva pastoral, apenas sobre alguns aspectos da
realidade que podem deter ou enfraquecer os dinamismos de renovação missionária
da Igreja, seja porque afectam a vida e a dignidade do povo de Deus, seja
porque incidem sobre os sujeitos que mais directamente participam nas
instituições eclesiais e nas tarefas de evangelização.
1. Alguns desafios do mundo actual
52. A humanidade vive, neste momento, uma viragem
histórica, que podemos constatar nos progressos que se verificam em vários
campos. São louváveis os sucessos que contribuem para o bem-estar das pessoas,
por exemplo, no âmbito da saúde, da educação e da comunicação. Todavia não
podemos esquecer que a maior parte dos homens e mulheres do nosso tempo vive o
seu dia a dia precariamente, com funestas consequências. Aumentam algumas
doenças. O medo e o desespero apoderam-se do coração de inúmeras pessoas, mesmo
nos chamados países ricos. A alegria de viver frequentemente se desvanece;
crescem a falta de respeito e a violência, a desigualdade social torna-se cada
vez mais patente. É preciso lutar para viver, e muitas vezes viver com pouca
dignidade. Esta mudança de época foi causada pelos enormes saltos qualitativos,
quantitativos, velozes e acumulados que se verificam no progresso científico,
nas inovações tecnológicas e nas suas rápidas aplicações em diversos âmbitos da
natureza e da vida. Estamos na era do conhecimento e da informação, fonte de
novas formas dum poder muitas vezes anónimo.
Não a uma economia da exclusão
53. Assim como o mandamento «não matar» põe um
limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos
dizer «não a uma economia da exclusão e da desigualdade social». Esta economia
mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não
seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão.
Não se pode tolerar mais o facto de se lançar comida no lixo, quando há pessoas
que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no jogo da
competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. Em
consequência desta situação, grandes massas da população vêem-se excluídas e
marginalizadas: sem trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída. O ser
humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e
depois lançar fora. Assim teve início a cultura do «descartável», que aliás
chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente do fenómeno de exploração e
opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a
pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou
sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são «explorados», mas
resíduos, «sobras».
54. Neste contexto, alguns defendem ainda as
teorias da «recaída favorável» que pressupõem que todo o crescimento económico,
favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e
inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos factos,
exprime uma confiança vaga e ingénua na bondade daqueles que detêm o poder
económico e nos mecanismos sacralizados do sistema económico reinante.
Entretanto, os excluídos continuam a esperar. Para se poder apoiar um estilo de
vida que exclui os outros ou mesmo entusiasmar-se com este ideal egoísta,
desenvolveu-se uma globalização da indiferença. Quase sem nos dar conta,
tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já não
choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos por cuidar deles,
como se tudo fosse uma responsabilidade de outrem, que não nos incumbe. A
cultura do bem-estar anestesia-nos, a ponto de perdermos a serenidade se o
mercado oferece algo que ainda não compramos, enquanto todas estas vidas
ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um mero espectáculo que não
nos incomoda de forma alguma.
Não à nova idolatria do dinheiro
55. Uma das causas desta situação está na relação
estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre
nós e as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos
esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da
primazia do ser humano. Criámos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de
ouro (cf. Ex 32, 1-35) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo
do dinheiro e na ditadura duma economia sem rosto e sem um objectivo
verdadeiramente humano. A crise mundial, que investe as finanças e a economia,
põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e sobretudo a grave carência
duma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das suas
necessidades: o consumo.
56. Enquanto os lucros de poucos crescem
exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar
daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a
autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o
direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem
comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de
forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras. Além disso, a
dívida e os respectivos juros afastam os países das possibilidades viáveis da
sua economia, e os cidadãos do seu real poder de compra. A tudo isto vem
juntar-se uma corrupção ramificada e uma evasão fiscal egoísta, que assumiram
dimensões mundiais. A ambição do poder e do ter não conhece limites. Neste
sistema que tende a fagocitar tudo para aumentar os benefícios, qualquer
realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos
interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta.
Não a um dinheiro que governa em vez
de servir
57. Por detrás desta atitude, escondem-se a
rejeição da ética e a recusa de Deus. Para a ética, olha-se habitualmente com
um certo desprezo sarcástico; é considerada contraproducente, demasiado humana,
porque relativiza o dinheiro e o poder. É sentida como uma ameaça, porque
condena a manipulação e degradação da pessoa. Em última instância, a ética leva
a Deus que espera uma resposta comprometida que está fora das categorias do
mercado. Para estas, se absolutizadas, Deus é incontrolável, não manipulável e
até mesmo perigoso, na medida em que chama o ser humano à sua plena realização
e à independência de qualquer tipo de escravidão. A ética – uma ética não
ideologizada – permite criar um equilíbrio e uma ordem social mais humana.
Neste sentido, animo os peritos financeiros e os governantes dos vários países
a considerarem as palavras dum sábio da antiguidade: «Não fazer os pobres
participar dos seus próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida. Não são
nossos, mas deles, os bens que aferrolhamos».
58. Uma reforma financeira que tivesse em conta a
ética exigiria uma vigorosa mudança de atitudes por parte dos dirigentes
políticos, a quem exorto a enfrentar este desafio com determinação e
clarividência, sem esquecer naturalmente a especificidade de cada contexto. O
dinheiro deve servir, e não governar! O Papa ama a todos, ricos e pobres, mas
tem a obrigação, em nome de Cristo, de lembrar que os ricos devem ajudar os
pobres, respeitá-los e promovê-los. Exorto-vos a uma solidariedade
desinteressada e a um regresso da economia e das finanças a uma ética propícia
ao ser humano.
Não à desigualdade social que gera
violência
59. Hoje, em muitas partes, reclama-se maior
segurança. Mas, enquanto não se eliminar a exclusão e a desigualdade dentro da
sociedade e entre os vários povos será impossível desarreigar a violência.
Acusam-se da violência os pobres e as populações mais pobres, mas, sem igualdade
de oportunidades, as várias formas de agressão e de guerra encontrarão um
terreno fértil que, mais cedo ou mais tarde, há-de provocar a explosão. Quando
a sociedade – local, nacional ou mundial – abandona na periferia uma parte de
si mesma, não há programas políticos, nem forças da ordem ou serviços secretos
que possam garantir indefinidamente a tranquilidade. Isto não acontece apenas
porque a desigualdade social provoca a reacção violenta de quantos são
excluídos do sistema, mas porque o sistema social e económico é injusto na sua
raiz. Assim como o bem tende a difundir-se, assim também o mal consentido, que
é a injustiça, tende a expandir a sua força nociva e a minar, silenciosamente,
as bases de qualquer sistema político e social, por mais sólido que pareça. Se
cada acção tem consequências, um mal embrenhado nas estruturas duma sociedade
sempre contém um potencial de dissolução e de morte. É o mal cristalizado nas
estruturas sociais injustas, a partir do qual não podemos esperar um futuro
melhor. Estamos longe do chamado «fim da história», já que as condições dum
desenvolvimento sustentável e pacífico ainda não estão adequadamente
implantadas e realizadas.
60. Os mecanismos da economia actual promovem uma
exacerbação do consumo, mas sabe-se que o consumismo desenfreado, aliado à
desigualdade social, é duplamente daninho para o tecido social. Assim, mais
cedo ou mais tarde, a desigualdade social gera uma violência que as corridas
armamentistas não resolvem nem poderão resolver jamais. Servem apenas para tentar
enganar aqueles que reclamam maior segurança, como se hoje não se soubesse que
as armas e a repressão violenta, mais do que dar solução, criam novos e piores
conflitos. Alguns comprazem-se simplesmente em culpar, dos próprios males, os
pobres e os países pobres, com generalizações indevidas, e pretendem encontrar
a solução numa «educação» que os tranquilize e transforme em seres domesticados
e inofensivos. Isto torna-se ainda mais irritante, quando os excluídos vêem
crescer este câncer social que é a corrupção profundamente radicada em muitos
países – nos seus Governos, empresários e instituições – seja qual for a
ideologia política dos governantes.
Alguns desafios culturais
61. Evangelizamos também procurando enfrentar os
diferentes desafios que se nos podem apresentar. Às vezes, estes manifestam-se
em verdadeiros ataques à liberdade religiosa ou em novas situações de
perseguição aos cristãos, que, nalguns países, atingiram níveis alarmantes de
ódio e violência. Em muitos lugares, trata-se mais de uma generalizada
indiferença relativista, relacionada com a desilusão e a crise das ideologias
que se verificou como reacção a tudo o que pareça totalitário. Isto não
prejudica só a Igreja, mas a vida social em geral. Reconhecemos que, numa
cultura onde cada um pretende ser portador duma verdade subjectiva própria,
torna-se difícil que os cidadãos queiram inserir-se num projecto comum que vai
além dos benefícios e desejos pessoais.
62. Na cultura dominante, ocupa o primeiro lugar
aquilo que é exterior, imediato, visível, rápido, superficial, provisório. O
real cede o lugar à aparência. Em muitos países, a globalização comportou uma
acelerada deterioração das raízes culturais com a invasão de tendências
pertencentes a outras culturas, economicamente desenvolvidas mas eticamente
debilitadas. Assim se exprimiram, em distintos Sínodos, os Bispos de vários
continentes. Há alguns anos, os Bispos da África, por exemplo, retomando a
Encíclica Sollicitudo rei socialis, assinalaram que muitas vezes se
quer transformar os países africanos em meras «peças de um mecanismo, partes de
uma engrenagem gigantesca. Isto verifica-se com frequência também no domínio
dos meios de comunicação social, os quais, sendo na sua maior parte geridos por
centros situados na parte norte do mundo, nem sempre têm na devida conta as
prioridades e os problemas próprios desses países e não respeitam a sua
fisionomia cultural». De igual modo, os Bispos da Ásia sublinharam «as
influências externas que estão a penetrar nas culturas asiáticas. Vão surgindo
formas novas de comportamento resultantes da orientação dos mass-media (…).
Em consequência disso, os aspectos negativos dos mass-media e
espectáculos estão a ameaçar os valores tradicionais».
63. A fé católica de muitos povos encontra-se hoje
perante o desafio da proliferação de novos movimentos religiosos, alguns
tendentes ao fundamentalismo e outros que parecem propor uma espiritualidade
sem Deus. Isto, por um lado, é o resultado duma reacção humana contra a
sociedade materialista, consumista e individualista e, por outro, um
aproveitamento das carências da população que vive nas periferias e zonas
pobres, sobrevive no meio de grandes preocupações humanas e procura soluções
imediatas para as suas necessidades. Estes movimentos religiosos, que se caracterizam
pela sua penetração subtil, vêm colmar, dentro do individualismo reinante, um
vazio deixado pelo racionalismo secularista. Além disso, é necessário
reconhecer que, se uma parte do nosso povo baptizado não sente a sua pertença à
Igreja, isso deve-se também à existência de estruturas com clima pouco
acolhedor nalgumas das nossas paróquias e comunidades, ou à atitude burocrática
com que se dá resposta aos problemas, simples ou complexos, da vida dos nossos
povos. Em muitas partes, predomina o aspecto administrativo sobre o pastoral,
bem como uma sacramentalização sem outras formas de evangelização.
64. O processo de secularização tende a reduzir a
fé e a Igreja ao âmbito privado e íntimo. Além disso, com a negação de toda a
transcendência, produziu-se uma crescente deformação ética, um enfraquecimento
do sentido do pecado pessoal e social e um aumento progressivo do relativismo;
e tudo isso provoca uma desorientação generalizada, especialmente na fase tão
vulnerável às mudanças da adolescência e juventude. Como justamente observam os
Bispos dos Estados Unidos da América, enquanto a Igreja insiste na existência
de normas morais objectivas, válidas para todos, «há aqueles que apresentam
esta doutrina como injusta, ou seja, contrária aos direitos humanos básicos.
Tais alegações brotam habitualmente de uma forma de relativismo moral, que se
une consistentemente a uma confiança nos direitos absolutos dos indivíduos.
Nesta perspectiva, a Igreja é sentida como se estivesse promovendo um
convencionalismo particular e interferisse com a liberdade individual». Vivemos
numa sociedade da informação que nos satura indiscriminadamente de dados, todos
postos ao mesmo nível, e acaba por nos conduzir a uma tremenda superficialidade
no momento de enquadrar as questões morais. Por conseguinte, torna-se
necessária uma educação que ensine a pensar criticamente e ofereça um caminho
de amadurecimento nos valores.
65. Apesar de toda a corrente secularista que
invade a sociedade, em muitos países – mesmo onde o cristianismo está em
minoria – a Igreja Católica é uma instituição credível perante a opinião
pública, fiável no que diz respeito ao âmbito da solidariedade e preocupação
pelos mais indigentes. Em repetidas ocasiões, ela serviu de medianeira na
solução de problemas que afectam a paz, a concórdia, o meio ambiente, a defesa
da vida, os direitos humanos e civis, etc. E como é grande a contribuição das
escolas e das universidades católicas no mundo inteiro! E é muito bom que assim
seja. Mas, quando levantamos outras questões que suscitam menor acolhimento
público, custa-nos a demonstrar que o fazemos por fidelidade às mesmas
convicções sobre a dignidade da pessoa humana e do bem comum.
66. A família atravessa uma crise cultural
profunda, como todas as comunidades e vínculos sociais. No caso da família, a
fragilidade dos vínculos reveste-se de especial gravidade, porque se trata da
célula básica da sociedade, o espaço onde se aprende a conviver na diferença e
a pertencer aos outros e onde os pais transmitem a fé aos seus filhos. O
matrimónio tende a ser visto como mera forma de gratificação afectiva, que se
pode constituir de qualquer maneira e modificar-se de acordo com a
sensibilidade de cada um. Mas a contribuição indispensável do matrimónio à
sociedade supera o nível da afectividade e o das necessidades ocasionais do
casal. Como ensinam os Bispos franceses, não provém «do sentimento amoroso,
efémero por definição, mas da profundidade do compromisso assumido pelos
esposos que aceitam entrar numa união de vida total».
67. O individualismo pós-moderno e globalizado
favorece um estilo de vida que debilita o desenvolvimento e a estabilidade dos
vínculos entre as pessoas e distorce os vínculos familiares. A acção pastoral
deve mostrar ainda melhor que a relação com o nosso Pai exige e incentiva uma
comunhão que cura, promove e fortalece os vínculos interpessoais. Enquanto no
mundo, especialmente nalguns países, se reacendem várias formas de guerras e
conflitos, nós, cristãos, insistimos na proposta de reconhecer o outro, de
curar as feridas, de construir pontes, de estreitar laços e de nos ajudarmos «a
carregar as cargas uns dos outros» (Gal 6, 2). Além disso, vemos
hoje surgir muitas formas de agregação para a defesa de direitos e a consecução
de nobres objectivos. Deste modo se manifesta uma sede de participação de
numerosos cidadãos, que querem ser construtores do desenvolvimento social e
cultural.
Desafios da inculturação da fé
68. O substrato cristão dalguns povos – sobretudo
ocidentais – é uma realidade viva. Aqui encontramos, especialmente nos mais
necessitados, uma reserva moral que guarda valores de autêntico humanismo
cristão. Um olhar de fé sobre a realidade não pode deixar de reconhecer o que
semeia o Espírito Santo. Significaria não ter confiança na sua acção livre e
generosa pensar que não existem autênticos valores cristãos, onde uma grande
parte da população recebeu o Baptismo e exprime de variadas maneiras a sua fé e
solidariedade fraterna. Aqui há que reconhecer muito mais que «sementes do
Verbo», visto que se trata duma autêntica fé católica com modalidades próprias
de expressão e de pertença à Igreja. Não convém ignorar a enorme importância
que tem uma cultura marcada pela fé, porque, não obstante os seus limites, esta
cultura evangelizada tem, contra os ataques do secularismo actual, muitos mais
recursos do que a mera soma dos crentes. Uma cultura popular evangelizada
contém valores de fé e solidariedade que podem provocar o desenvolvimento duma
sociedade mais justa e crente, e possui uma sabedoria peculiar que devemos
saber reconhecer com olhar agradecido.
69. Há uma necessidade imperiosa de evangelizar as
culturas para inculturar o Evangelho. Nos países de tradição católica,
tratar-se-á de acompanhar, cuidar e fortalecer a riqueza que já existe e, nos
países de outras tradições religiosas ou profundamente secularizados, há que
procurar novos processos de evangelização da cultura, ainda que suponham
projectos a longo prazo. Entretanto não podemos ignorar que há sempre uma
chamada ao crescimento: toda a cultura e todo o grupo social necessitam de
purificação e amadurecimento. No caso das culturas populares de povos
católicos, podemos reconhecer algumas fragilidades que precisam ainda de ser
curadas pelo Evangelho: o machismo, o alcoolismo, a violência doméstica, uma escassa
participação na Eucaristia, crenças fatalistas ou supersticiosas que levam a
recorrer à bruxaria, etc. Mas o melhor ponto de partida para curar e ver-se
livre de tais fragilidades é precisamente a piedade popular.
70. Certo é também que, às vezes, se dá maior
realce a formas exteriores das tradições de grupos concretos ou a supostas
revelações privadas, que se absolutizam, do que ao impulso da piedade cristã.
Há certo cristianismo feito de devoções – próprio duma vivência individual e
sentimental da fé – que, na realidade, não corresponde a uma autêntica «piedade
popular». Alguns promovem estas expressões sem se preocupar com a promoção
social e a formação dos fiéis, fazendo-o nalguns casos para obter benefícios
económicos ou algum poder sobre os outros. Também não podemos ignorar que, nas
últimas décadas, se produziu uma ruptura na transmissão geracional da fé cristã
no povo católico. É inegável que muitos se sentem desiludidos e deixam de se
identificar com a tradição católica, que cresceu o número de pais que não
baptizam os seus filhos nem os ensinam a rezar, e que há um certo êxodo para
outras comunidades de fé. Algumas causas desta ruptura são a falta de espaços
de diálogo familiar, a influência dos meios de comunicação, o subjectivismo
relativista, o consumismo desenfreado que o mercado incentiva, a falta de
cuidado pastoral pelos mais pobres, a inexistência dum acolhimento cordial nas
nossas instituições, e a dificuldade que sentimos em recriar a adesão mística
da fé num cenário religioso pluralista.
Desafios das culturas urbanas
71. A nova Jerusalém, a cidade santa (cf. Ap 21,
2-4), é a meta para onde peregrina toda a humanidade. É interessante que a
revelação nos diga que a plenitude da humanidade e da história se realiza numa
cidade. Precisamos de identificar a cidade a partir dum olhar contemplativo,
isto é, um olhar de fé que descubra Deus que habita nas suas casas, nas suas
ruas, nas suas praças. A presença de Deus acompanha a busca sincera que
indivíduos e grupos efectuam para encontrar apoio e sentido para a sua vida.
Ele vive entre os citadinos promovendo a solidariedade, a fraternidade, o
desejo de bem, de verdade, de justiça. Esta presença não precisa de ser criada,
mas descoberta, desvendada. Deus não Se esconde de quantos O buscam com coração
sincero, ainda que o façam tacteando, de maneira imprecisa e incerta.
72. Na cidade, o elemento religioso é mediado por
diferentes estilos de vida, por costumes ligados a um sentido do tempo, do
território e das relações que difere do estilo das populações rurais. Na vida
quotidiana, muitas vezes os citadinos lutam para sobreviver e, nesta luta,
esconde-se um sentido profundo da existência que habitualmente comporta também
um profundo sentido religioso. Precisamos de o contemplar para conseguirmos um
diálogo parecido com o que o Senhor teve com a Samaritana, junto do poço onde
ela procurava saciar a sua sede (cf. Jo 4, 7-26).
73. Novas culturas continuam a formar-se nestas
enormes geografias humanas onde o cristão já não costuma ser promotor ou gerador
de sentido, mas recebe delas outras linguagens, símbolos, mensagens e
paradigmas que oferecem novas orientações de vida, muitas vezes em contraste
com o Evangelho de Jesus. Uma cultura inédita palpita e está em elaboração na
cidade. O Sínodo constatou que as transformações destas grandes áreas e a
cultura que exprimem são, hoje, um lugar privilegiado da nova evangelização.
Isto requer imaginar espaços de oração e de comunhão com características
inovadoras, mais atraentes e significativas para as populações urbanas. Os
ambientes rurais, devido à influência dos mass-media, não estão
imunes destas transformações culturais que também operam mudanças
significativas nas suas formas de vida.
74. Torna-se necessária uma evangelização que
ilumine os novos modos de se relacionar com Deus, com os outros e com o
ambiente, e que suscite os valores fundamentais. É necessário chegar aonde são
concebidas as novas histórias e paradigmas, alcançar com a Palavra de Jesus os
núcleos mais profundos da alma das cidades. Não se deve esquecer que a cidade é
um âmbito multicultural. Nas grandes cidades, pode observar-se uma trama em que
grupos de pessoas compartilham as mesmas formas de sonhar a vida e ilusões
semelhantes, constituindo-se em novos sectores humanos, em territórios
culturais, em cidades invisíveis. Na realidade, convivem variadas formas
culturais, mas exercem muitas vezes práticas de segregação e violência. A
Igreja é chamada a ser servidora dum diálogo difícil. Enquanto há citadinos que
conseguem os meios adequados para o desenvolvimento da vida pessoal e familiar,
muitíssimos são também os «não-citadinos», os «meio-citadinos» ou os «resíduos
urbanos». A cidade dá origem a uma espécie de ambivalência permanente, porque,
ao mesmo tempo que oferece aos seus habitantes infinitas possibilidades,
interpõe também numerosas dificuldades ao pleno desenvolvimento da vida de
muitos. Esta contradição provoca sofrimentos lancinantes. Em muitas partes do
mundo, as cidades são cenário de protestos em massa, onde milhares de habitantes
reclamam liberdade, participação, justiça e várias reivindicações que, se não
forem adequadamente interpretadas, nem pela força poderão ser silenciadas.
75. Não podemos ignorar que, nas cidades,
facilmente se desenvolve o tráfico de drogas e de pessoas, o abuso e a
exploração de menores, o abandono de idosos e doentes, várias formas de
corrupção e crime. Ao mesmo tempo, o que poderia ser um precioso espaço de
encontro e solidariedade, transforma-se muitas vezes num lugar de retraimento e
desconfiança mútua. As casas e os bairros constroem-se mais para isolar e
proteger do que para unir e integrar. A proclamação do Evangelho será uma base
para restabelecer a dignidade da vida humana nestes contextos, porque Jesus
quer derramar nas cidades vida em abundância (cf. Jo 10, 10).
O sentido unitário e completo da vida humana proposto pelo Evangelho é o melhor
remédio para os males urbanos, embora devamos reparar que um programa e um
estilo uniformes e rígidos de evangelização não são adequados para esta realidade.
Mas viver a fundo a realidade humana e inserir-se no coração dos desafios como
fermento de testemunho, em qualquer cultura, em qualquer cidade, melhora o
cristão e fecunda a cidade.
2. Tentações dos agentes pastorais
76. Sinto uma enorme gratidão pela tarefa de
quantos trabalham na Igreja. Não quero agora deter-me na exposição das
actividades dos vários agentes pastorais, desde os Bispos até ao mais simples e
ignorado dos serviços eclesiais. Prefiro reflectir sobre os desafios que todos
eles enfrentam no meio da cultura globalizada actual. Mas, antes de tudo e como
dever de justiça, tenho a dizer que é enorme a contribuição da Igreja no mundo
actual. A nossa tristeza e vergonha pelos pecados de alguns membros da Igreja,
e pelos próprios, não devem fazer esquecer os inúmeros cristãos que dão a vida
por amor: ajudam tantas pessoas seja a curar-se seja a morrer em paz em
hospitais precários, acompanham as pessoas que caíram escravas de diversos
vícios nos lugares mais pobres da terra, prodigalizam-se na educação de
crianças e jovens, cuidam de idosos abandonados por todos, procuram comunicar
valores em ambientes hostis, e dedicam-se de muitas outras maneiras que mostram
o imenso amor à humanidade inspirado por Deus feito homem. Agradeço o belo
exemplo que me dão tantos cristãos que oferecem a sua vida e o seu tempo com
alegria. Este testemunho faz-me muito bem e me apoia na minha aspiração pessoal
de superar o egoísmo para uma dedicação maior.
77. Apesar disso, como filhos desta época, todos
estamos de algum modo sob o influxo da cultura globalizada actual, que, sem
deixar de apresentar valores e novas possibilidades, pode também limitar-nos,
condicionar-nos e até mesmo combalir-nos. Reconheço que precisamos de criar
espaços apropriados para motivar e sanar os agentes pastorais, «lugares onde
regenerar a sua fé em Jesus crucificado e ressuscitado, onde compartilhar as
próprias questões mais profundas e as preocupações quotidianas, onde discernir
em profundidade e com critérios evangélicos sobre a própria existência e
experiência, com o objectivo de orientar para o bem e a beleza as próprias
opções individuais e sociais». Ao mesmo tempo, quero chamar a atenção para
algumas tentações que afectam, particularmente nos nossos dias, os agentes
pastorais.
Sim ao desafio duma espiritualidade
missionária
78. Hoje nota-se em muitos agentes pastorais, mesmo
pessoas consagradas, uma preocupação exacerbada pelos espaços pessoais de
autonomia e relaxamento, que leva a viver os próprios deveres como mero
apêndice da vida, como se não fizessem parte da própria identidade. Ao mesmo
tempo, a vida espiritual confunde-se com alguns momentos religiosos que
proporcionam algum alívio, mas não alimentam o encontro com os outros, o
compromisso no mundo, a paixão pela evangelização. Assim, é possível notar em
muitos agentes evangelizadores – não obstante rezem – uma acentuação do individualismo,
uma crise de identidade e um declínio do fervor.
São três males que se alimentam entre si.
79. A cultura mediática e alguns ambientes intelectuais
transmitem, às vezes, uma acentuada desconfiança quanto à mensagem da Igreja, e
um certo desencanto. Em consequência disso, embora rezando, muitos agentes
pastorais desenvolvem uma espécie de complexo de inferioridade que os leva a
relativizar ou esconder a sua identidade cristã e as suas convicções. Gera-se
então um círculo vicioso, porque assim não se sentem felizes com o que são nem
com o que fazem, não se sentem identificados com a missão evangelizadora, e
isto debilita a entrega. Acabam assim por sufocar a alegria da missão numa
espécie de obsessão por serem como todos os outros e terem o que possuem os
demais. Deste modo, a tarefa da evangelização torna-se forçada e dedica-se-lhe
pouco esforço e um tempo muito limitado.
80. Nos agentes pastorais, independentemente do
estilo espiritual ou da linha de pensamento que possam ter, desenvolve-se um
relativismo ainda mais perigoso que o doutrinal. Tem a ver com as opções mais
profundas e sinceras que determinam uma forma de vida concreta. Este relativismo
prático é agir como se Deus não existisse, decidir como se os pobres não
existissem, sonhar como se os outros não existissem, trabalhar como se aqueles
que não receberam o anúncio não existissem. É impressionante como até aqueles
que aparentemente dispõem de sólidas convicções doutrinais e espirituais
acabam, muitas vezes, por cair num estilo de vida que os leva a agarrarem-se a
seguranças económicas ou a espaços de poder e de glória humana que se buscam
por qualquer meio, em vez de dar a vida pelos outros na missão. Não nos
deixemos roubar o entusiasmo missionário!
Não à acédia egoísta
81. Quando mais precisamos dum dinamismo
missionário que leve sal e luz ao mundo, muitos leigos temem que alguém os
convide a realizar alguma tarefa apostólica e procuram fugir de qualquer
compromisso que lhes possa roubar o tempo livre. Hoje, por exemplo, tornou-se
muito difícil nas paróquias conseguir catequistas que estejam preparados e
perseverem no seu dever por vários anos. Mas algo parecido acontece com os sacerdotes
que se preocupam obsessivamente com o seu tempo pessoal. Isto, muitas vezes,
fica-se a dever a que as pessoas sentem imperiosamente necessidade de preservar
os seus espaços de autonomia, como se uma tarefa de evangelização fosse um
veneno perigoso e não uma resposta alegre ao amor de Deus que nos convoca para
a missão e nos torna completos e fecundos. Alguns resistem a provar até ao
fundo o gosto da missão e acabam mergulhados numa acédia paralisadora.
82. O problema não está sempre no excesso de actividades,
mas sobretudo nas actividades mal vividas, sem as motivações adequadas, sem uma
espiritualidade que impregne a acção e a torne desejável. Daí que as obrigações
cansem mais do que é razoável, e às vezes façam adoecer. Não se trata duma
fadiga feliz, mas tensa, gravosa, desagradável e, em definitivo, não assumida.
Esta acédia pastoral pode ter origens diversas: alguns caem nela por
sustentarem projectos irrealizáveis e não viverem de bom grado o que poderiam
razoavelmente fazer; outros, por não aceitarem a custosa evolução dos processos
e querem que tudo caia do Céu; outros, por se apegarem a alguns projectos ou a
sonhos de sucesso cultivados pela sua vaidade; outros, por terem perdido o
contacto real com o povo, numa despersonalização da pastoral que leva a prestar
mais atenção à organização do que às pessoas, acabando assim por se
entusiasmarem mais com a «tabela de marcha» do que com a própria marcha; outros
ainda caem na acédia, por não saberem esperar e quererem dominar o ritmo da
vida. A ânsia hodierna de chegar a resultados imediatos faz com que os agentes
pastorais não tolerem facilmente tudo o que signifique alguma contradição, um
aparente fracasso, uma crítica, uma cruz.
83. Assim se gera a maior ameaça, que «é o
pragmatismo cinzento da vida quotidiana da Igreja, no qual aparentemente tudo
procede dentro da normalidade, mas na realidade a fé vai-se deteriorando e
degenerando na mesquinhez». Desenvolve-se a psicologia do túmulo, que pouco a
pouco transforma os cristãos em múmias de museu. Desiludidos com a realidade,
com a Igreja ou consigo mesmos, vivem constantemente tentados a apegar-se a uma
tristeza melosa, sem esperança, que se apodera do coração como «o mais precioso
elixir do demónio». Chamados para iluminar e comunicar vida, acabam por se
deixar cativar por coisas que só geram escuridão e cansaço interior e corroem o
dinamismo apostólico. Por tudo isto, permiti que insista: Não deixemos que nos
roubem a alegria da evangelização!
Não ao pessimismo estéril
84. A alegria do Evangelho é tal que nada e ninguém
no-la poderá tirar (cf. Jo 16, 22). Os males do nosso mundo –
e os da Igreja – não deveriam servir como desculpa para reduzir a nossa entrega
e o nosso ardor. Vejamo-los como desafios para crescer. Além disso, o olhar
crente é capaz de reconhecer a luz que o Espírito Santo sempre irradia no meio
da escuridão, sem esquecer que, «onde abundou o pecado, superabundou a graça» (Rm 5,
20). A nossa fé é desafiada a entrever o vinho em que a água pode ser
transformada, e a descobrir o trigo que cresce no meio do joio. Cinquenta anos
depois do Concílio Vaticano II, apesar de nos entristecerem as misérias do
nosso tempo e estarmos longe de optimismos ingénuos, um maior realismo não deve
significar menor confiança no Espírito nem menor generosidade. Neste sentido,
podemos voltar a ouvir as palavras pronunciadas pelo Beato João XXIII naquele
memorável 11 de Outubro de 1962: «Chegam-nos aos ouvidos insinuações de almas,
ardorosas sem dúvida no zelo, mas não dotadas de grande sentido de discrição e
moderação. Nos tempos actuais, não vêem senão prevaricações e ruínas. [...] Mas
a nós parece-nos que devemos discordar desses profetas de desgraças, que
anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do
mundo. Na ordem presente das coisas, a misericordiosa Providência está-nos
levantando para uma ordem de relações humanas que, por obra dos homens e a
maior parte das vezes para além do que eles esperam, se encaminham para o
cumprimento dos seus desígnios superiores e inesperados, e tudo, mesmo as
adversidades humanas, converge para o bem da Igreja».
85. Uma das tentações mais sérias que sufoca o
fervor e a ousadia é a sensação de derrota que nos transforma em pessimistas
lamurientos e desencantados com cara de vinagre. Ninguém pode empreender uma
luta, se de antemão não está plenamente confiado no triunfo. Quem começa sem
confiança, perdeu de antemão metade da batalha e enterra os seus talentos.
Embora com a dolorosa consciência das próprias fraquezas, há que seguir em
frente, sem se dar por vencido, e recordar o que disse o Senhor a São Paulo:
«Basta-te a minha graça, porque a força manifesta-se na fraqueza» (2 Cor 12,
9). O triunfo cristão é sempre uma cruz, mas cruz que é, simultaneamente,
estandarte de vitória, que se empunha com ternura batalhadora contra as
investidas do mal. O mau espírito da derrota é irmão da tentação de separar
prematuramente o trigo do joio, resultado de uma desconfiança ansiosa e
egocêntrica.
86. É verdade que, nalguns lugares, se produziu uma
«desertificação» espiritual, fruto do projecto de sociedades que querem
construir sem Deus ou que destroem as suas raízes cristãs. Lá, «o mundo cristão
está a tornar-se estéril e se esgota como uma terra excessivamente desfrutada
que se transforma em poeira». Noutros países, a resistência violenta ao
cristianismo obriga os cristãos a viverem a sua fé às escondidas no país que
amam. Esta é outra forma muito triste de deserto. E a própria família ou o
lugar de trabalho podem ser também o tal ambiente árido, onde há que conservar
a fé e procurar irradiá-la. Mas «é precisamente a partir da experiência deste
deserto, deste vazio, que podemos redescobrir a alegria de crer, a sua
importância vital para nós, homens e mulheres. No deserto, é possível
redescobrir o valor daquilo que é essencial para a vida; assim sendo, no mundo
de hoje, há inúmeros sinais da sede de Deus, do sentido último da vida, ainda
que muitas vezes expressos implícita ou negativamente. E, no deserto, existe
sobretudo a necessidade de pessoas de fé que, com suas próprias vidas, indiquem
o caminho para a Terra Prometida, mantendo assim viva a esperança». Em todo o
caso, lá somos chamados a ser pessoas-cântaro para dar de beber aos outros. Às
vezes o cântaro transforma-se numa pesada cruz, mas foi precisamente na Cruz
que o Senhor, trespassado, Se nos entregou como fonte de água viva. Não
deixemos que nos roubem a esperança!
Sim às relações novas geradas por
Jesus Cristo
87. Neste tempo em que as redes e demais
instrumentos da comunicação humana alcançaram progressos inauditos, sentimos o
desafio de descobrir e transmitir a «mística» de viver juntos, misturar-nos,
encontrar-nos, dar o braço, apoiar-nos, participar nesta maré um pouco caótica
que pode transformar-se numa verdadeira experiência de fraternidade, numa
caravana solidária, numa peregrinação sagrada. Assim, as maiores possibilidades
de comunicação traduzir-se-ão em novas oportunidades de encontro e
solidariedade entre todos. Como seria bom, salutar, libertador, esperançoso, se
pudéssemos trilhar este caminho! Sair de si mesmo para se unir aos outros faz
bem. Fechar-se em si mesmo é provar o veneno amargo da imanência, e a
humanidade perderá com cada opção egoísta que fizermos.
88. O ideal cristão convidará sempre a superar a
suspeita, a desconfiança permanente, o medo de sermos invadidos, as atitudes
defensivas que nos impõe o mundo actual. Muitos tentam escapar dos outros
fechando-se na sua privacidade confortável ou no círculo reduzido dos mais
íntimos, e renunciam ao realismo da dimensão social do Evangelho. Porque, assim
como alguns quiseram um Cristo puramente espiritual, sem carne nem cruz, também
se pretendem relações interpessoais mediadas apenas por sofisticados aparatos,
por ecrãs e sistemas que se podem acender e apagar à vontade. Entretanto o
Evangelho convida-nos sempre a abraçar o risco do encontro com o rosto do
outro, com a sua presença física que interpela, com o seu sofrimentos e suas
reivindicações, com a sua alegria contagiosa permanecendo lado a lado. A
verdadeira fé no Filho de Deus feito carne é inseparável do dom de si mesmo, da
pertença à comunidade, do serviço, da reconciliação com a carne dos outros. Na
sua encarnação, o Filho de Deus convidou-nos à revolução da ternura.
89. O isolamento, que é uma concretização do
imanentismo, pode exprimir-se numa falsa autonomia que exclui Deus, mas pode
também encontrar na religião uma forma de consumismo espiritual à medida do
próprio individualismo doentio. O regresso ao sagrado e a busca espiritual, que
caracterizam a nossa época. são fenómenos ambíguos. Mais do que o ateísmo, o
desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de
muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou
com um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro. Se não encontram
na Igreja uma espiritualidade que os cure, liberte, encha de vida e de paz, ao
mesmo tempo que os chame à comunhão solidária e à fecundidade missionária,
acabarão enganados por propostas que não humanizam nem dão glória a Deus.
90. As formas próprias da religiosidade popular são
encarnadas, porque brotaram da encarnação da fé cristã numa cultura popular.
Por isso mesmo, incluem uma relação pessoal, não com energias harmonizadoras,
mas com Deus, Jesus Cristo, Maria, um Santo. Têm carne, têm rostos. Estão aptas
para alimentar potencialidades relacionais e não tanto fugas individualistas.
Noutros sectores da nossa sociedade, cresce o apreço por várias formas de
«espiritualidade do bem-estar» sem comunidade, por uma «teologia da prosperidade»
sem compromissos fraternos ou por experiências subjectivas sem rostos, que se
reduzem a uma busca interior imanentista.
91. Um desafio importante é mostrar que a solução
nunca consistirá em escapar de uma relação pessoal e comprometida com Deus, que
ao mesmo tempo nos comprometa com os outros. Isto é o que se verifica hoje
quando os crentes procuram esconder-se e livrar-se dos outros, e quando
subtilmente escapam de um lugar para outro ou de uma tarefa para outra, sem
criar vínculos profundos e estáveis: «A imaginação e mudança de lugares enganou
a muitos». É um remédio falso que faz adoecer o coração e, às vezes, o corpo.
Faz falta ajudar a reconhecer que o único caminho é aprender a encontrar os
demais com a atitude adequada, que é valorizá-los e aceitá-los como
companheiros de estrada, sem resistências interiores. Melhor ainda, trata-se de
aprender a descobrir Jesus no rosto dos outros, na sua voz, nas suas
reivindicações; e aprender também a sofrer, num abraço com Jesus crucificado,
quando recebemos agressões injustas ou ingratidões, sem nos cansarmos jamais de
optar pela fraternidade.
92. Nisto está a verdadeira cura: de facto, o modo
de nos relacionarmos com os outros que, em vez de nos adoecer, nos cura é uma
fraternidade mística, contemplativa, que sabe ver a grandeza
sagrada do próximo, que sabe descobrir Deus em cada ser humano, que sabe
tolerar as moléstias da convivência agarrando-se ao amor de Deus, que sabe
abrir o coração ao amor divino para procurar a felicidade dos outros como a
procura o seu Pai bom. Precisamente nesta época, inclusive onde são um
«pequenino rebanho» (Lc 12, 32), os discípulos do Senhor são
chamados a viver como comunidade que seja sal da terra e luz do mundo
(cf. Mt 5, 13-16). São chamados a testemunhar, de forma sempre
nova, uma pertença evangelizadora. Não deixemos que nos roubem a comunidade!
Não ao mundanismo espiritual
93. O mundanismo espiritual, que se esconde por
detrás de aparências de religiosidade e até mesmo de amor à Igreja, é buscar,
em vez da glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal. É aquilo que
o Senhor censurava aos fariseus: «Como vos é possível acreditar, se andais à
procura da glória uns dos outros, e não procurais a glória que vem do Deus
único?» (Jo 5, 44). É uma maneira subtil de procurar «os próprios
interesses, não os interesses de Jesus Cristo» (Fl 2, 21).
Reveste-se de muitas formas, de acordo com o tipo de pessoas e situações em que
penetra. Por cultivar o cuidado da aparência, nem sempre suscita pecados de
domínio público, pelo que externamente tudo parece correcto. Mas, se invadisse
a Igreja, «seria infinitamente mais desastroso do que qualquer outro mundanismo
meramente moral».
94. Este mundanismo pode alimentar-se sobretudo de
duas maneiras profundamente relacionadas. Uma delas é o fascínio do
gnosticismo, uma fé fechada no subjectivismo, onde apenas interessa uma
determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que
supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância, a pessoa fica
enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos. A outra
maneira é o neopelagianismo auto-referencial e prometeuco de quem, no fundo, só
confia nas suas próprias forças e se sente superior aos outros por cumprir
determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel a um certo estilo católico
próprio do passado. É uma suposta segurança doutrinal ou disciplinar que dá
lugar a um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de evangelizar, se
analisam e classificam os demais e, em vez de facilitar o acesso à graça,
consomem-se as energias a controlar. Em ambos os casos, nem Jesus Cristo nem os
outros interessam verdadeiramente. São manifestações dum imanentismo
antropocêntrico. Não é possível imaginar que, destas formas desvirtuadas do
cristianismo, possa brotar um autêntico dinamismo evangelizador.
95. Este obscuro mundanismo manifesta-se em muitas
atitudes, aparentemente opostas mas com a mesma pretensão de «dominar o espaço
da Igreja». Nalguns, há um cuidado exibicionista da liturgia, da doutrina e do
prestígio da Igreja, mas não se preocupam que o Evangelho adquira uma real
inserção no povo fiel de Deus e nas necessidades concretas da história. Assim,
a vida da Igreja transforma-se numa peça de museu ou numa possessão de poucos.
Noutros, o próprio mundanismo espiritual esconde-se por detrás do fascínio de
poder mostrar conquistas sociais e políticas, ou numa vanglória ligada à gestão
de assuntos práticos, ou numa atracção pelas dinâmicas de auto-estima e de
realização autoreferencial. Também se pode traduzir em várias formas de se
apresentar a si mesmo envolvido numa densa vida social cheia de viagens,
reuniões, jantares, recepções. Ou então desdobra-se num funcionalismo
empresarial, carregado de estatísticas, planificações e avaliações, onde o principal
beneficiário não é o povo de Deus mas a Igreja como organização. Em qualquer um
dos casos, não traz o selo de Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado,
encerra-se em grupos de elite, não sai realmente à procura dos que andam
perdidos nem das imensas multidões sedentas de Cristo. Já não há ardor
evangélico, mas o gozo espúrio duma autocomplacência egocêntrica.
96. Neste contexto, alimenta-se a vanglória de
quantos se contentam com ter algum poder e preferem ser generais de exércitos
derrotados antes que simples soldados dum batalhão que continua a lutar.
Quantas vezes sonhamos planos apostólicos expansionistas, meticulosos e bem
traçados, típicos de generais derrotados! Assim negamos a nossa história de
Igreja, que é gloriosa por ser história de sacrifícios, de esperança, de luta
diária, de vida gasta no serviço, de constância no trabalho fadigoso, porque
todo o trabalho é «suor do nosso rosto». Em vez disso, entretemo-nos vaidosos a
falar sobre «o que se deveria fazer» – o pecado do «deveriaqueísmo» – como
mestres espirituais e peritos de pastoral que dão instruções ficando de fora.
Cultivamos a nossa imaginação sem limites e perdemos o contacto com a dolorosa
realidade do nosso povo fiel.
97. Quem caiu neste mundanismo olha de cima e de
longe, rejeita a profecia dos irmãos, desqualifica quem o questiona, faz
ressaltar constantemente os erros alheios e vive obcecado pela aparência.
Circunscreveu os pontos de referência do coração ao horizonte fechado da sua
imanência e dos seus interesses e, consequentemente, não aprende com os seus
pecados nem está verdadeiramente aberto ao perdão. É uma tremenda corrupção,
com aparências de bem. Devemos evitá-lo, pondo a Igreja em movimento de saída
de si mesma, de missão centrada em Jesus Cristo, de entrega aos pobres. Deus
nos livre de uma Igreja mundana sob vestes espirituais ou pastorais! Este
mundanismo asfixiante cura-se saboreando o ar puro do Espírito Santo, que nos
liberta de estarmos centrados em nós mesmos, escondidos numa aparência
religiosa vazia de Deus. Não deixemos que nos roubem o Evangelho!
Não à guerra entre nós
98. Dentro do povo de Deus e nas diferentes
comunidades, quantas guerras! No bairro, no local de trabalho, quantas guerras
por invejas e ciúmes, mesmo entre cristãos! O mundanismo espiritual leva alguns
cristãos a estar em guerra com outros cristãos que se interpõem na sua busca
pelo poder, prestígio, prazer ou segurança económica. Além disso, alguns deixam
de viver uma adesão cordial à Igreja por alimentar um espírito de contenda.
Mais do que pertencer à Igreja inteira, com a sua rica diversidade, pertencem a
este ou àquele grupo que se sente diferente ou especial.
99. O mundo está dilacerado pelas guerras e a
violência, ou ferido por um generalizado individualismo que divide os seres
humanos e põe-nos uns contra os outros visando o próprio bem-estar. Em vários
países, ressurgem conflitos e antigas divisões que se pensavam em parte
superados. Aos cristãos de todas as comunidades do mundo, quero pedir-lhes de
modo especial um testemunho de comunhão fraterna, que se torne fascinante e
resplandecente. Que todos possam admirar como vos preocupais uns pelos outros,
como mutuamente vos encorajais animais e ajudais: «Por isto é que todos
conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (Jo 13,
35). Foi o que Jesus, com uma intensa oração, Jesus pediu ao Pai: «Que todos
sejam um só (…) em nós [para que] o mundo creia» (Jo 17, 21).
Cuidado com a tentação da inveja! Estamos no mesmo barco e vamos para o mesmo
porto! Peçamos a graça de nos alegrarmos com os frutos alheios, que são de
todos.
100. Para quantos estão feridos por antigas
divisões, resulta difícil aceitar que os exortemos ao perdão e à reconciliação,
porque pensam que ignoramos a sua dor ou pretendemos fazer-lhes perder a memória
e os ideais. Mas, se virem o testemunho de comunidades autenticamente fraternas
e reconciliadas, isso é sempre uma luz que atrai. Por isso me dói muito
comprovar como nalgumas comunidades cristãs, e mesmo entre pessoas consagradas,
se dá espaço a várias formas de ódio, divisão, calúnia, difamação, vingança,
ciúme, a desejos de impor as próprias ideias a todo o custo, e até perseguições
que parecem uma implacável caça às bruxas. Quem queremos evangelizar com estes
comportamentos?
101. Peçamos ao Senhor que nos faça compreender a
lei do amor. Que bom é termos esta lei! Como nos faz bem, apesar de tudo
amar-nos uns aos outros! Sim, apesar de tudo! A cada um de nós é dirigida a
exortação de Paulo: «Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem»
(Rm 12, 21). E ainda: «Não nos cansemos de fazer o bem» (Gal 6,
9). Todos nós provamos simpatias e antipatias, e talvez neste momento estejamos
chateados com alguém. Pelo menos digamos ao Senhor: «Senhor, estou chateado com
este, com aquela. Peço-Vos por ele e por ela». Rezar pela pessoa com quem
estamos irritados é um belo passo rumo ao amor, e é um acto de evangelização.
Façamo-lo hoje mesmo. Não deixemos que nos roubem o ideal do amor fraterno!
Outros desafios eclesiais
102. A imensa maioria do povo de Deus é constituída
por leigos. Ao seu serviço, está uma minoria: os ministros ordenados. Cresceu a
consciência da identidade e da missão dos leigos na Igreja. Embora não
suficiente, pode-se contar com um numeroso laicado, dotado de um arreigado
sentido de comunidade e uma grande fidelidade ao compromisso da caridade, da
catequese, da celebração da fé. Mas, a tomada de consciência desta
responsabilidade laical que nasce do Baptismo e da Confirmação não se manifesta
de igual modo em toda a parte; nalguns casos, porque não se formaram para
assumir responsabilidades importantes, noutros por não encontrar espaço nas
suas Igrejas particulares para poderem exprimir-se e agir por causa dum
excessivo clericalismo que os mantém à margem das decisões. Apesar de se notar
uma maior participação de muitos nos ministérios laicais, este compromisso não
se reflecte na penetração dos valores cristãos no mundo social, político e
económico; limita-se muitas vezes às tarefas no seio da Igreja, sem um
empenhamento real pela aplicação do Evangelho na transformação da sociedade. A
formação dos leigos e a evangelização das categorias profissionais e
intelectuais constituem um importante desafio pastoral.
103. A Igreja reconhece a indispensável
contribuição da mulher na sociedade, com uma sensibilidade, uma intuição e
certas capacidades peculiares, que habitualmente são mais próprias das mulheres
que dos homens. Por exemplo, a especial solicitude feminina pelos outros, que
se exprime de modo particular, mas não exclusivamente, na maternidade. Vejo,
com prazer, como muitas mulheres partilham responsabilidades pastorais
juntamente com os sacerdotes, contribuem para o acompanhamento de pessoas,
famílias ou grupos e prestam novas contribuições para a reflexão teológica. Mas
ainda é preciso ampliar os espaços para uma presença feminina mais incisiva na
Igreja. Porque «o génio feminino é necessário em todas as expressões da vida
social; por isso deve ser garantida a presença das mulheres também no âmbito do
trabalho» e nos vários lugares onde se tomam as decisões importantes, tanto na
Igreja como nas estruturas sociais.
104. As reivindicações dos legítimos direitos das
mulheres, a partir da firme convicção de que homens e mulheres têm a mesma
dignidade, colocam à Igreja questões profundas que a desafiam e não se podem
iludir superficialmente. O sacerdócio reservado aos homens, como sinal de
Cristo Esposo que Se entrega na Eucaristia, é uma questão que não se põe em
discussão, mas pode tornar-se particularmente controversa se se identifica demasiado
a potestade sacramental com o poder. Não se esqueça que, quando falamos da
potestade sacerdotal, «estamos na esfera da função e não na
da dignidade e da santidade». O sacerdócio ministerial é um
dos meios que Jesus utiliza ao serviço do seu povo, mas a grande dignidade vem
do Baptismo, que é acessível a todos. A configuração do sacerdote com Cristo
Cabeça – isto é, como fonte principal da graça – não comporta uma exaltação que
o coloque por cima dos demais. Na Igreja, as funções «não dão justificação à
superioridade de uns sobre os outros». Com efeito, uma mulher, Maria,
é mais importante do que os Bispos. Mesmo quando a função do sacerdócio
ministerial é considerada «hierárquica», há que ter bem presente que «se
ordena integralmente à santidade dos membros do corpo místico
de Cristo». A sua pedra de fecho e o seu fulcro não são o poder entendido como
domínio, mas a potestade de administrar o sacramento da Eucaristia; daqui
deriva a sua autoridade, que é sempre um serviço ao povo. Aqui está um grande
desafio para os Pastores e para os teólogos, que poderiam ajudar a reconhecer
melhor o que isto implica no que se refere ao possível lugar das mulheres onde
se tomam decisões importantes, nos diferentes âmbitos da Igreja.
105. A pastoral juvenil, tal como estávamos
habituados a desenvolvê-la, sofreu o impacto das mudanças sociais. Nas
estruturas ordinárias, os jovens habitualmente não encontram respostas para as
suas preocupações, necessidades, problemas e feridas. A nós, adultos, custa-nos
ouvi-los com paciência, compreender as suas preocupações ou as suas
reivindicações, e aprender a falar-lhes na linguagem que eles entendem. Pela
mesma razão, as propostas educacionais não produzem os frutos esperados. A
proliferação e o crescimento de associações e movimentos predominantemente
juvenis podem ser interpretados como uma acção do Espírito que abre caminhos
novos em sintonia com as suas expectativas e a busca de espiritualidade
profunda e dum sentido mais concreto de pertença. Todavia é necessário tornar
mais estável a participação destas agregações no âmbito da pastoral de conjunto
da Igreja.
106. Embora nem sempre seja fácil abordar os
jovens, houve crescimento em dois aspectos: a consciência de que toda a
comunidade os evangeliza e educa, e a urgência de que eles tenham um
protagonismo maior. Deve-se reconhecer que, no actual contexto de crise do
compromisso e dos laços comunitários, são muitos os jovens que se solidarizam
contra os males do mundo, aderindo a várias formas de militância e
voluntariado. Alguns participam na vida da Igreja, integram grupos de serviço e
diferentes iniciativas missionárias nas suas próprias dioceses ou noutros
lugares. Como é bom que os jovens sejam «caminheiros da fé», felizes por
levarem Jesus Cristo a cada esquina, a cada praça, a cada canto da terra!
107. Em muitos lugares, há escassez de vocações ao
sacerdócio e à vida consagrada. Frequentemente isso fica-se a dever à falta de
ardor apostólico contagioso nas comunidades, pelo que estas não entusiasmam nem
fascinam. Onde há vida, fervor, paixão de levar Cristo aos outros, surgem
vocações genuínas. Mesmo em paróquias onde os sacerdotes não são muito
disponíveis nem alegres, é a vida fraterna e fervorosa da comunidade que
desperta o desejo de se consagrar inteiramente a Deus e à evangelização,
especialmente se essa comunidade vivente reza insistentemente pelas vocações e
tem a coragem de propor aos seus jovens um caminho de especial consagração. Por
outro lado, apesar da escassez vocacional, hoje temos noção mais clara da necessidade
de melhor selecção dos candidatos ao sacerdócio. Não se podem encher os
seminários com qualquer tipo de motivações, e menos ainda se estas estão
relacionadas com insegurança afectiva, busca de formas de poder, glória humana
ou bem-estar económico.
108. Como já disse, não pretendi oferecer um
diagnóstico completo, mas convido as comunidades a completarem e a enriquecerem
estas perspectivas a partir da consciência dos desafios próprios e das
comunidades vizinhas. Espero que, ao fazê-lo, tenham em conta que, todas as
vezes que intentamos ler os sinais dos tempos na realidade actual, é
conveniente ouvir os jovens e os idosos. Tanto uns como outros são a esperança
dos povos. Os idosos fornecem a memória e a sabedoria da experiência, que
convida a não repetir tontamente os mesmos erros do passado. Os jovens
chamam-nos a despertar e a aumentar a esperança, porque trazem consigo as novas
tendências da humanidade e abrem-nos ao futuro, de modo que não fiquemos
encalhados na nostalgia de estruturas e costumes que já não são fonte de vida
no mundo actual.
109. Os desafios existem para ser superados.
Sejamos realistas, mas sem perder a alegria, a audácia e a dedicação cheia de
esperança. Não deixemos que nos roubem a força missionária!
Texto
proveniente da página http://pt.radiovaticana.va/news/2013/11/26/primeira_exorta%C3%A7%C3%A3o_apost%C3%B3lica_do_papa_francisco/bra-750057
do
site da Rádio Vaticano
Nenhum comentário:
Postar um comentário