Capítulo III
O ANÚNCIO DO EVANGELHO
110. Depois de considerar alguns desafios da
realidade actual, quero agora recordar o dever que incumbe sobre nós em toda e
qualquer época e lugar, porque «não pode haver verdadeira evangelização sem
o anúncio explícito de Jesus como Senhor» e sem existir uma
«primazia do anúncio de Jesus Cristo em qualquer trabalho de evangelização».
Recolhendo as preocupações dos Bispos asiáticos, João Paulo II afirmou que, se
a Igreja «deve realizar o seu destino providencial, então uma evangelização
entendida como o jubiloso, paciente e progressivo anúncio da Morte salvífica e
Ressurreição de Jesus Cristo há-de ser a vossa prioridade absoluta». Isto é
válido para todos.
1. Todo o povo de Deus anuncia o
Evangelho
111. A evangelização é dever da Igreja. Este
sujeito da evangelização, porém, é mais do que uma instituição orgânica e
hierárquica; é, antes de tudo, um povo que peregrina para Deus. Trata-se
certamente de um mistério que mergulha as raízes na Trindade,
mas tem a sua concretização histórica num povo peregrino e evangelizador, que
sempre transcende toda a necessária expressão institucional. Proponho que nos
detenhamos um pouco nesta forma de compreender a Igreja, que tem o seu
fundamento último na iniciativa livre e gratuita de Deus.
Um povo para todos
112. A salvação, que Deus nos oferece, é obra da
sua misericórdia. Não há acção humana, por melhor que seja, que nos faça
merecer tão grande dom. Por pura graça, Deus atrai-nos para nos unir a Si.
Envia o seu Espírito aos nossos corações, para nos fazer seus filhos, para nos
transformar e tornar capazes de responder com a nossa vida ao seu amor. A
Igreja é enviada por Jesus Cristo como sacramento da salvação oferecida por
Deus. Através da sua acção evangelizadora, ela colabora como instrumento da
graça divina, que opera incessantemente para além de toda e qualquer possível
supervisão. Bem o exprimiu Bento XVI, ao abrir as reflexões do Sínodo: «É
sempre importante saber que a primeira palavra, a iniciativa verdadeira, a
actividade verdadeira vem de Deus e só inserindo-nos nesta iniciativa divina,
só implorando esta iniciativa divina, nos podemos tornar também – com Ele e
n'Ele – evangelizadores». O princípio daprimazia da graça deve ser
um farol que ilumine constantemente as nossas reflexões sobre a evangelização.
113. Esta salvação, que Deus realiza e a Igreja
jubilosamente anuncia, é para todos, e Deus criou um caminho para Se unir a
cada um dos seres humanos de todos os tempos. Escolheu convocá-los como povo, e
não como seres isolados. Ninguém se salva sozinho, isto é, nem como indivíduo
isolado, nem por suas próprias forças. Deus atrai-nos, no respeito da complexa
trama de relações interpessoais que a vida numa comunidade humana supõe. Este
povo, que Deus escolheu para Si e convocou, é a Igreja. Jesus não diz aos
Apóstolos para formarem um grupo exclusivo, um grupo de elite. Jesus diz: «Ide,
pois, fazei discípulos de todos os povos» (Mt 28, 19). São Paulo
afirma que no povo de Deus, na Igreja, «não há judeu nem grego (...), porque
todos sois um só em Cristo Jesus» (Gal 3, 28). Eu gostaria de dizer
àqueles que se sentem longe de Deus e da Igreja, aos que têm medo ou aos
indiferentes: o Senhor também te chama para seres parte do seu povo, e fá-lo
com grande respeito e amor!
114. Ser Igreja significa ser povo de Deus, de
acordo com o grande projecto de amor do Pai. Isto implica ser o fermento de
Deus no meio da humanidade; quer dizer anunciar e levar a salvação de Deus a
este nosso mundo, que muitas vezes se sente perdido, necessitado de ter
respostas que encorajem, dêem esperança e novo vigor para o caminho. A Igreja
deve ser o lugar da misericórdia gratuita, onde todos possam sentir-se
acolhidos, amados, perdoados e animados a viverem segundo a vida boa do
Evangelho.
Um povo com muitos rostos
115. Este Povo de Deus encarna-se nos povos da
Terra, cada um dos quais tem a sua cultura própria. A noção de cultura é um
instrumento precioso para compreender as diversas expressões da vida cristã que
existem no povo de Deus. Trata-se do estilo de vida que uma determinada sociedade
possui, da forma peculiar que têm os seus membros de se relacionar entre si,
com as outras criaturas e com Deus. Assim entendida, a cultura abrange a
totalidade da vida dum povo. Cada povo, na sua evolução histórica, desenvolve a
própria cultura com legítima autonomia. Isso fica-se a dever ao facto de que a
pessoa humana, «por sua natureza, necessita absolutamente da vida social» e
mantém contínua referência à sociedade, na qual vive uma maneira concreta de se
relacionar com a realidade. O ser humano está sempre culturalmente situado:
«natureza e cultura encontram-se intimamente ligadas». A graça supõe a cultura,
e o dom de Deus encarna-se na cultura de quem o recebe.
116. Ao longo destes dois milénios de cristianismo,
uma quantidade inumerável de povos recebeu a graça da fé, fê-la florir na sua
vida diária e transmitiu-a segundo as próprias modalidades culturais. Quando
uma comunidade acolhe o anúncio da salvação, o Espírito Santo fecunda a sua
cultura com a força transformadora do Evangelho. E assim, como podemos ver na
história da Igreja, o cristianismo não dispõe de um único modelo cultural, mas
«permanecendo o que é, na fidelidade total ao anúncio evangélico e à tradição
da Igreja, o cristianismo assumirá também o rosto das diversas culturas e dos
vários povos onde for acolhido e se radicar». Nos diferentes povos, que
experimentam o dom de Deus segundo a própria cultura, a Igreja exprime a sua
genuína catolicidade e mostra «a beleza deste rosto pluriforme». Através das
manifestações cristãs dum povo evangelizado, o Espírito Santo embeleza a
Igreja, mostrando-lhe novos aspectos da Revelação e presenteando-a com um novo
rosto. Pela inculturação, a Igreja «introduz os povos com as suas culturas na
sua própria comunidade», porque «cada cultura oferece formas e valores
positivos que podem enriquecer o modo como o Evangelho é pregado, compreendido
e vivido». Assim, «a Igreja, assumindo os valores das diversas culturas,
torna-se sponsa ornata monilibus suis, a noiva que se adorna com
suas jóias (cf. Is 61, 10)».
117. Se for bem entendida, a diversidade cultural
não ameaça a unidade da Igreja. É o Espírito Santo, enviado pelo Pai e o Filho,
que transforma os nossos corações e nos torna capazes de entrar na comunhão
perfeita da Santíssima Trindade, onde tudo encontra a sua unidade. O Espírito
Santo constrói a comunhão e a harmonia do povo de Deus. Ele mesmo é a harmonia,
tal como é o vínculo de amor entre o Pai e o Filho. É Ele que suscita uma
abundante e diversificada riqueza de dons e, ao mesmo tempo, constrói uma
unidade que nunca é uniformidade, mas multiforme harmonia que atrai. A
evangelização reconhece com alegria estas múltiplas riquezas que o Espírito
gera na Igreja. Não faria justiça à lógica da encarnação pensar num
cristianismo monocultural e monocórdico. É verdade que algumas culturas
estiveram intimamente ligadas à pregação do Evangelho e ao desenvolvimento do
pensamento cristão, mas a mensagem revelada não se identifica com nenhuma delas
e possui um conteúdo transcultural. Por isso, na evangelização de novas
culturas ou de culturas que não acolheram a pregação cristã, não é
indispensável impor uma determinada forma cultural, por mais bela e antiga que
seja, juntamente com a proposta do Evangelho. A mensagem, que anunciamos,
sempre apresenta alguma roupagem cultural, mas às vezes, na Igreja, caímos na
vaidosa sacralização da própria cultura, o que pode mostrar mais fanatismo do
que autêntico ardor evangelizador.
118. Os Bispos da Oceânia pediram que a Igreja
neste continente «desenvolva uma compreensão e exposição da verdade de Cristo
partindo das tradições e culturas locais», e instaram todos os missionários «a
trabalhar de harmonia com os cristãos indígenas para garantir que a doutrina e
a vida da Igreja sejam expressas em formas legítimas e apropriadas a cada
cultura». Não podemos pretender que todos os povos dos vários continentes, ao
exprimir a fé cristã, imitem as modalidades adoptadas pelos povos europeus num
determinado momento da história, porque a fé não se pode confinar dentro dos
limites de compreensão e expressão duma cultura. É indiscutível que uma única
cultura não esgota o mistério da redenção de Cristo.
Todos somos discípulos
missionários
119. Em todos os baptizados, desde o primeiro ao
último, actua a força santificadora do Espírito que impele a evangelizar. O
povo de Deus é santo em virtude desta unção, que o torna infalível «in
credendo», ou seja, ao crer, não pode enganar-se, ainda que não encontre
palavras para explicar a sua fé. O Espírito guia-o na verdade e condu-lo à
salvação. Como parte do seu mistério de amor pela humanidade, Deus dota a
totalidade dos fiéis com um instinto da fé – o sensus
fidei – que os ajuda a discernir o que vem realmente de Deus. A
presença do Espírito confere aos cristãos uma certa conaturalidade com as
realidades divinas e uma sabedoria que lhes permite captá-las intuitivamente,
embora não possuam os meios adequados para expressá-las com precisão.
120. Em virtude do Baptismo recebido, cada membro
do povo de Deus tornou-se discípulo missionário (cf. Mt 28,
19). Cada um dos baptizados, independentemente da própria função na Igreja e do
grau de instrução da sua fé, é um sujeito activo de evangelização, e seria
inapropriado pensar num esquema de evangelização realizado por agentes
qualificados enquanto o resto do povo fiel seria apenas receptor das suas
acções. A nova evangelização deve implicar um novo protagonismo de cada um dos
baptizados. Esta convicção transforma-se num apelo dirigido a cada cristão para
que ninguém renuncie ao seu compromisso de evangelização, porque, se uma pessoa
experimentou verdadeiramente o amor de Deus que o salva, não precisa de muito
tempo de preparação para sair a anunciá-lo, não pode esperar que lhe dêem
muitas lições ou longas instruções. Cada cristão é missionário na medida em que
se encontrou com o amor de Deus em Cristo Jesus; não digamos mais que somos
«discípulos» e «missionários», mas sempre que somos «discípulos missionários».
Se não estivermos convencidos disto, olhemos para os primeiros discípulos, que
logo depois de terem conhecido o olhar de Jesus, saíram proclamando cheios de
alegria: «Encontrámos o Messias» (Jo 1, 41). A Samaritana, logo que
terminou o seu diálogo com Jesus, tornou-se missionária, e muitos samaritanos
acreditaram em Jesus «devido às palavras da mulher» (Jo 4, 39).
Também São Paulo, depois do seu encontro com Jesus Cristo, «começou
imediatamente a proclamar (…) que Jesus era o Filho de Deus» (Act 9,
20). Porque esperamos nós?
121. Certamente todos somos chamados a crescer como
evangelizadores. Devemos procurar simultaneamente uma melhor formação, um
aprofundamento do nosso amor e um testemunho mais claro do Evangelho. Neste
sentido, todos devemos deixar que os outros nos evangelizem constantemente;
isto não significa que devemos renunciar à missão evangelizadora, mas encontrar
o modo de comunicar Jesus que corresponda à situação em que vivemos. Seja como
for, todos somos chamados a dar aos outros o testemunho explícito do amor
salvífico do Senhor, que, sem olhar às nossas imperfeições, nos oferece a sua
proximidade, a sua Palavra, a sua força, e dá sentido à nossa vida. O teu
coração sabe que a vida não é a mesma coisa sem Ele; pois bem, aquilo que
descobriste, o que te ajuda a viver e te dá esperança, isso é o que deves
comunicar aos outros. A nossa imperfeição não deve ser desculpa; pelo
contrário, a missão é um estímulo constante para não nos acomodarmos na
mediocridade, mas continuarmos a crescer. O testemunho de fé, que todo o
cristão é chamado a oferecer, implica dizer como São Paulo: «Não que já o tenha
alcançado ou já seja perfeito; mas corro para ver se o alcanço, (…) lançando-me
para o que vem à frente» (Fl 3, 12-13).
A força evangelizadora da piedade
popular
122. Da mesma forma, podemos pensar que os
diferentes povos, nos quais foi inculturado o Evangelho, são sujeitos
colectivos activos, agentes da evangelização. Assim é, porque cada povo é o
criador da sua cultura e o protagonista da sua história. A cultura é algo de
dinâmico, que um povo recria constantemente, e cada geração transmite à
seguinte um conjunto de atitudes relativas às diversas situações existenciais,
que esta nova geração deve reelaborar face aos próprios desafios. O ser humano
«é simultaneamente filho e pai da cultura onde está inserido». Quando o
Evangelho se inculturou num povo, no seu processo de transmissão cultural
também transmite a fé de maneira sempre nova; daí a importância da
evangelização entendida como inculturação. Cada porção do povo de Deus, ao
traduzir na vida o dom de Deus segundo a sua índole própria, dá testemunho da
fé recebida e enriquece-a com novas expressões que falam por si. Pode dizer-se
que «o povo se evangeliza continuamente a si mesmo». Aqui ganha importância a
piedade popular, verdadeira expressão da actividade missionária espontânea do
povo de Deus. Trata-se de uma realidade em permanente desenvolvimento, cujo
protagonista é o Espírito Santo.
123. Na piedade popular, pode-se captar a
modalidade em que a fé recebida se encarnou numa cultura e continua a
transmitir-se. Vista por vezes com desconfiança, a piedade popular foi objecto
de revalorização nas décadas posteriores ao Concílio. Quem deu um impulso
decisivo nesta direcção, foi Paulo VI na sua Exortação Apostólica Evangelii
Nuntiandi. Nela explica que a piedade popular «traduz em si uma certa sede
de Deus, que somente os pobres e os simples podem experimentar» e «torna as
pessoas capazes para terem rasgos de generosidade e predispõe-nas para o
sacrifício até ao heroísmo, quando se trata de manifestar a fé». Já mais perto
dos nossos dias, Bento XVI, na América Latina, assinalou que se trata de um
«precioso tesouro da Igreja Católica» e que nela «aparece a alma dos povos
latino-americanos».
124. No Documento de Aparecida,
descrevem-se as riquezas que o Espírito Santo explicita na piedade popular por
sua iniciativa gratuita. Naquele amado Continente, onde uma multidão imensa de
cristãos exprime a sua fé através da piedade popular, os Bispos chamam-na
também «espiritualidade popular» ou «mística popular». Trata-se de uma
verdadeira «espiritualidade encarnada na cultura dos simples». Não é vazia de
conteúdos, mas descobre-os e exprime-os mais pela via simbólica do que pelo uso
da razão instrumental e, no acto de fé, acentua mais o credere in Deum que
o credere Deum. É «uma maneira legítima de viver a fé, um modo de
se sentir parte da Igreja e uma forma de ser missionários»; comporta a graça da
missionariedade, do sair de si e do peregrinar: «O caminhar juntos para os
santuários e o participar em outras manifestações da piedade popular, levando
também os filhos ou convidando a outras pessoas, é em si mesmo um gesto
evangelizador». Não coarctemos nem pretendamos controlar esta força
missionária!
125. Para compreender esta necessidade, é preciso
abordá-la com o olhar do Bom Pastor, que não procura julgar mas amar. Só a
partir da conaturalidade afectiva que dá o amor é que podemos apreciar a vida
teologal presente na piedade dos povos cristãos, especialmente nos pobres.
Penso na fé firme das mães ao pé da cama do filho doente, que se agarram a um
terço ainda que não saibam elencar os artigos do Credo; ou na carga imensa de
esperança contida numa vela que se acende, numa casa humilde, para pedir ajuda
a Maria, ou nos olhares de profundo amor a Cristo crucificado. Quem ama o povo
fiel de Deus, não pode ver estas acções unicamente como uma busca natural da
divindade; são a manifestação duma vida teologal animada pela acção do Espírito
Santo, que foi derramado em nossos corações (cf. Rm 5,
5).
126. Na piedade popular, por ser fruto do Evangelho
inculturado, subjaz uma força activamente evangelizadora que não podemos
subestimar: seria ignorar a obra do Espírito Santo. Ao contrário, somos
chamados a encorajá-la e fortalecê-la para aprofundar o processo de
inculturação, que é uma realidade nunca acabada. As expressões da piedade
popular têm muito que nos ensinar e, para quem as sabe ler, são um lugar
teológico a que devemos prestar atenção particularmente na hora de
pensar a nova evangelização.
De pessoa a pessoa
127. Hoje que a Igreja deseja viver uma profunda
renovação missionária, há uma forma de pregação que nos compete a todos como
tarefa diária: é cada um levar o Evangelho às pessoas com quem se encontra,
tanto aos mais íntimos como aos desconhecidos. É a pregação informal que se
pode realizar durante uma conversa, e é também a que realiza um missionário
quando visita um lar. Ser discípulo significa ter a disposição permanente de
levar aos outros o amor de Jesus; e isto sucede espontaneamente em qualquer
lugar: na rua, na praça, no trabalho, num caminho.
128. Nesta pregação, sempre respeitosa e amável, o
primeiro momento é um diálogo pessoal, no qual a outra pessoa se exprime e
partilha as suas alegrias, as suas esperanças, as preocupações com os seus
entes queridos e muitas coisas que enchem o coração. Só depois desta conversa é
que se pode apresentar-lhe a Palavra, seja pela leitura de algum versículo ou
de modo narrativo, mas sempre recordando o anúncio fundamental: o amor pessoal
de Deus que Se fez homem, entregou-Se a Si mesmo por nós e, vivo, oferece a sua
salvação e a sua amizade. É o anúncio que se partilha com uma atitude humilde e
testemunhal de quem sempre sabe aprender, com a consciência de que esta
mensagem é tão rica e profunda que sempre nos ultrapassa. Umas vezes exprime-se
de maneira mais directa, outras através dum testemunho pessoal, uma história,
um gesto, ou outra forma que o próprio Espírito Santo possa suscitar numa
circunstância concreta. Se parecer prudente e houver condições, é bom que este
encontro fraterno e missionário conclua com uma breve oração que se relacione
com as preocupações que a pessoa manifestou. Assim ela sentirá mais claramente
que foi ouvida e interpretada, que a sua situação foi posta nas mãos de Deus, e
reconhecerá que a Palavra de Deus fala realmente à sua própria vida.
129. Contudo não se deve pensar que o anúncio
evangélico tenha de ser transmitido sempre com determinadas fórmulas
pré-estabelecidas ou com palavras concretas que exprimam um conteúdo
absolutamente invariável. Transmite-se com formas tão diversas que seria
impossível descrevê-las ou catalogá-las, e cujo sujeito colectivo é o povo de
Deus com seus gestos e sinais inumeráveis. Por conseguinte, se o Evangelho se
encarnou numa cultura, já não se comunica apenas através do anúncio de pessoa a
pessoa. Isto deve fazer-nos pensar que, nos países onde o cristianismo é
minoria, para além de animar cada baptizado a anunciar o Evangelho, as Igrejas
particulares hão-de promover activamente formas, pelo menos incipientes, de
inculturação. Enfim, o que se deve procurar é que a pregação do Evangelho,
expressa com categorias próprias da cultura onde é anunciado, provoque uma nova
síntese com essa cultura. Embora estes processos sejam sempre lentos, às vezes
o medo paralisa-nos demasiado. Se deixamos que as dúvidas e os medos sufoquem
toda a ousadia, é possível que, em vez de sermos criativos, nos deixemos
simplesmente ficar cómodos sem provocar qualquer avanço e, neste caso, não
seremos participantes dos processos históricos com a nossa cooperação, mas
simplesmente espectadores duma estagnação estéril da Igreja.
Carismas ao serviço da comunhão
evangelizadora
130. O Espírito Santo enriquece toda a Igreja
evangelizadora também com diferentes carismas. São dons para renovar e edificar
a Igreja. Não se trata de um património fechado, entregue a um grupo para que o
guarde; mas são presentes do Espírito integrados no corpo eclesial, atraídos
para o centro que é Cristo, donde são canalizados num impulso evangelizador. Um
sinal claro da autenticidade dum carisma é a sua eclesialidade, a sua
capacidade de se integrar harmoniosamente na vida do povo santo de Deus para o
bem de todos. Uma verdadeira novidade suscitada pelo Espírito não precisa de
fazer sombra sobre outras espiritualidades e dons para se afirmar a si mesma.
Quanto mais um carisma dirigir o seu olhar para o coração do Evangelho, tanto
mais eclesial será o seu exercício. É na comunhão, mesmo que seja fadigosa, que
um carisma se revela autêntica e misteriosamente fecundo. Se vive este desafio,
a Igreja pode ser um modelo para a paz no mundo.
131. As diferenças entre as pessoas e as
comunidades por vezes são incómodas, mas o Espírito Santo, que suscita esta
diversidade, de tudo pode tirar algo de bom e transformá-lo em dinamismo
evangelizador que actua por atracção. A diversidade deve ser sempre conciliada
com a ajuda do Espírito Santo; só Ele pode suscitar a diversidade, a
pluralidade, a multiplicidade e, ao mesmo tempo, realizar a unidade. Ao invés,
quando somos nós que pretendemos a diversidade e nos fechamos em nossos
particularismos, em nossos exclusivismos, provocamos a divisão; e, por outro
lado, quando somos nós que queremos construir a unidade com os nossos planos
humanos, acabamos por impor a uniformidade, a homologação. Isto não ajuda a
missão da Igreja.
Cultura, pensamento e educação
132. O anúncio às culturas implica também um
anúncio às culturas profissionais, científicas e académicas. É o encontro entre
a fé, a razão e as ciências, que visa desenvolver um novo discurso sobre a
credibilidade, uma apologética original que ajude a criar as predisposições
para que o Evangelho seja escutado por todos. Quando algumas categorias da
razão e das ciências são acolhidas no anúncio da mensagem, tais categorias
tornam-se instrumentos de evangelização; é a água transformada em vinho. É
aquilo que, uma vez assumido, não só é redimido, mas torna-se instrumento do
Espírito para iluminar e renovar o mundo.
133. Uma vez que não basta a preocupação do
evangelizador por chegar a cada pessoa, mas o Evangelho também se anuncia às
culturas no seu conjunto, a teologia – e não só a teologia pastoral – em
diálogo com outras ciências e experiências humanas tem grande importância para
pensar como fazer chegar a proposta do Evangelho à variedade dos contextos
culturais e dos destinatários. A Igreja, comprometida na evangelização, aprecia
e encoraja o carisma dos teólogos e o seu esforço na investigação teológica,
que promove o diálogo com o mundo da cultura e da ciência. Faço apelo aos
teólogos para que cumpram este serviço como parte da missão salvífica da
Igreja. Mas, para isso, é necessário que tenham a peito a finalidade
evangelizadora da Igreja e da própria teologia, e não se contentem com uma
teologia de gabinete.
134. As universidades são um âmbito privilegiado
para pensar e desenvolver este compromisso de evangelização de modo
interdisciplinar e inclusivo. As escolas católicas, que sempre procuram
conjugar a tarefa educacional com o anúncio explícito do Evangelho, constituem
uma contribuição muito válida para a evangelização da cultura, mesmo em países
e cidades onde uma situação adversa nos incentiva a usar a nossa criatividade
para se encontrar os caminhos adequados.
2. A homilia
135. Consideremos agora a pregação dentro da
Liturgia, que requer uma séria avaliação por parte dos Pastores. Deter-me-ei
particularmente, e até com certa meticulosidade, na homilia e sua preparação,
porque são muitas as reclamações relacionadas com este ministério importante, e
não podemos fechar os ouvidos. A homilia é o ponto de comparação para avaliar a
proximidade e a capacidade de encontro de um Pastor com o seu povo. De facto,
sabemos que os fiéis lhe dão muita importância; e, muitas vezes, tanto eles
como os próprios ministros ordenados sofrem: uns a ouvir e os outros a pregar.
É triste que assim seja. A homilia pode ser, realmente, uma experiência intensa
e feliz do Espírito, um consolador encontro com a Palavra, uma fonte constante
de renovação e crescimento.
136. Renovemos a nossa confiança na pregação, que
se funda na convicção de que é Deus que deseja alcançar os outros através do
pregador e de que Ele mostra o seu poder através da palavra humana. São Paulo
fala vigorosamente sobre a necessidade de pregar, porque o Senhor quis chegar
aos outros por meio também da nossa palavra (cf. Rm 10, 14-17).
Com a palavra, Nosso Senhor conquistou o coração da gente. De todas as partes,
vinham para O ouvir (cf. Mc 1, 45). Ficavam maravilhados,
«bebendo» os seus ensinamentos (cf. Mc 6, 2). Sentiam que lhes
falava como quem tem autoridade (cf. Mc 1, 27). E os
Apóstolos, que Jesus estabelecera «para estarem com Ele e para os enviar a
pregar» (Mc 3, 14), atraíram para o seio da Igreja todos os povos
com a palavra (cf. Mc 16, 15.20).
O contexto litúrgico
137. Agora é oportuno recordar que «a proclamação
litúrgica da Palavra de Deus, principalmente no contexto da assembleia
eucarística, não é tanto um momento de meditação e de catequese, como sobretudo
o diálogo de Deus com o seu povo, no qual se proclamam as maravilhas da
salvação e se propõem continuamente as exigências da Aliança». Reveste-se de um
valor especial a homilia, derivado do seu contexto eucarístico, que supera toda
a catequese por ser o momento mais alto do diálogo entre Deus e o seu povo,
antes da comunhão sacramental. A homilia é um retomar este diálogo que já está
estabelecido entre o Senhor e o seu povo. Aquele que prega deve conhecer o
coração da sua comunidade para identificar onde está vivo e ardente o desejo de
Deus e também onde é que este diálogo de amor foi sufocado ou não pôde dar fruto.
138. A homilia não pode ser um espectáculo de
divertimento, não corresponde à lógica dos recursos mediáticos, mas deve dar
fervor e significado à celebração. É um género peculiar, já que se trata de uma
pregação no quadro duma celebração litúrgica; por conseguinte, deve
ser breve e evitar que se pareça com uma conferência ou uma lição. O pregador
pode até ser capaz de manter vivo o interesse das pessoas por uma hora, mas
assim a sua palavra torna-se mais importante que a celebração da fé. Se a
homilia se prolonga demasiado, lesa duas características da celebração
litúrgica: a harmonia entre as suas partes e o seu ritmo. Quando a pregação se
realiza no contexto da Liturgia, incorpora-se como parte da oferenda que se
entrega ao Pai e como mediação da graça que Cristo derrama na celebração. Este
mesmo contexto exige que a pregação oriente a assembleia, e também o pregador,
para uma comunhão com Cristo na Eucaristia, que transforme a vida. Isto requer
que a palavra do pregador não ocupe um lugar excessivo, para que o Senhor
brilhe mais que o ministro.
A conversa da mãe
139. Dissemos que o povo de Deus, pela acção
constante do Espírito nele, se evangeliza continuamente a si mesmo. Que
implicações tem esta convicção para o pregador? Lembra-nos que a Igreja é mãe e
prega ao povo como uma mãe fala ao seu filho, sabendo que o filho tem confiança
de que tudo o que se lhe ensina é para seu bem, porque se sente amado. Além
disso, a boa mãe sabe reconhecer tudo o que Deus semeou no seu filho, escuta as
suas preocupações e aprende com ele. O espírito de amor que reina numa família
guia tanto a mãe como o filho nos seus diálogos, nos quais se ensina e aprende,
se corrige e valoriza o que é bom; assim deve acontecer também na homilia. O
Espírito que inspirou os Evangelhos e actua no povo de Deus, inspira também
como se deve escutar a fé do povo e como se deve pregar em cada Eucaristia.
Portanto a pregação cristã encontra, no coração da cultura do povo, um
manancial de água viva tanto para saber o que se deve dizer como para encontrar
o modo mais apropriado para o dizer. Assim como todos gostamos que nos falem na
nossa língua materna, assim também, na fé, gostamos que nos falem em termos da
«cultura materna», em termos do idioma materno (cf. 2 Mac 7,
21.27), e o coração dispõe-se a ouvir melhor. Esta linguagem é uma tonalidade
que transmite coragem, inspiração, força, impulso.
140. Este âmbito materno-eclesial, onde se
desenrola o diálogo do Senhor com o seu povo, deve ser encarecido e cultivado
através da proximidade cordial do pregador, do tom caloroso da sua voz, da
mansidão do estilo das suas frases, da alegria dos seus gestos. Mesmo que às
vezes a homilia seja um pouco maçante, se houver este espírito
materno-eclesial, será sempre fecunda, tal como os conselhos maçantes duma mãe,
com o passar do tempo, dão fruto no coração dos filhos.
141. Ficamos admirados com os recursos empregues
pelo Senhor para dialogar com o seu povo, revelar o seu mistério a todos,
cativar a gente comum com ensinamentos tão elevados e exigentes. Creio que o
segredo de Jesus esteja escondido naquele seu olhar o povo mais além das suas
fraquezas e quedas: «Não temais, pequenino rebanho, porque aprouve ao vosso Pai
dar-vos o Reino» (Lc 12, 32); Jesus prega com este espírito.
Transbordando de alegria no Espírito, bendiz o Pai por Lhe atrair os
pequeninos: «Bendigo-Te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste
estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelaste aos pequeninos» (Lc 10,
21). O Senhor compraz-Se verdadeiramente em dialogar com o seu povo, e compete
ao pregador fazer sentir este gosto do Senhor ao seu povo.
Palavras que abrasam os corações
142. Um diálogo é muito mais do que a comunicação
duma verdade. Realiza-se pelo prazer de falar e pelo bem concreto que se
comunica através das palavras entre aqueles que se amam. É um bem que não
consiste em coisas, mas nas próprias pessoas que mutuamente se dão no diálogo.
A pregação puramente moralista ou doutrinadora e também a que se transforma
numa lição de exegese reduzem esta comunicação entre os corações que se
verifica na homilia e que deve ter um carácter quase sacramental: «A fé surge
da pregação, e a pregação surge pela palavra de Cristo» (Rm 10,
17). Na homilia, a verdade anda de mãos dadas com a beleza e o bem. Não se
trata de verdades abstractas ou de silogismos frios, porque se comunica também
a beleza das imagens que o Senhor utilizava para incentivar a prática do bem. A
memória do povo fiel, como a de Maria, deve ficar transbordante das maravilhas
de Deus. O seu coração, esperançado na prática alegre e possível do amor que
lhe foi anunciado, sente que toda a palavra na Escritura, antes de ser
exigência, é dom.
143. O desafio duma pregação inculturada consiste
em transmitir a síntese da mensagem evangélica, e não ideias ou valores soltos.
Onde está a tua síntese, ali está o teu coração. A diferença entre fazer luz
com sínteses e o fazê-lo com ideias soltas é a mesma que há entre o ardor do
coração e o tédio. O pregador tem a belíssima e difícil missão de unir os
corações que se amam: o do Senhor e os do seu povo. O diálogo entre Deus e o
seu povo reforça ainda mais a aliança entre ambos e estreita o vínculo da
caridade. Durante o tempo da homilia, os corações dos crentes fazem silêncio e
deixam-No falar a Ele. O Senhor e o seu povo falam-se de mil e uma maneiras
directamente, sem intermediários, mas, na homilia, querem que alguém sirva de
instrumento e exprima os sentimentos, de modo que, depois, cada um possa
escolher como continuar a sua conversa. A palavra é, essencialmente, mediadora
e necessita não só dos dois dialogantes mas também de um pregador que a
represente como tal, convencido de que «não nos pregamos a nós mesmos, mas a
Cristo Jesus, o Senhor, e nos consideramos vossos servos, por amor de Jesus» (2
Cor 4, 5).
144. Falar com o coração implica mantê-lo não só
ardente, mas também iluminado pela integridade da Revelação e pelo caminho que
essa Palavra percorreu no coração da Igreja e do nosso povo fiel ao longo da
sua história. A identidade cristã, que é aquele abraço baptismal que o Pai nos
deu em pequeninos, faz-nos anelar, como filhos pródigos – e predilectos em
Maria –, pelo outro abraço, o do Pai misericordioso que nos espera na glória.
Fazer com que o nosso povo se sinta, de certo modo, no meio destes dois abraços
é a tarefa difícil, mas bela, de quem prega o Evangelho.
3. A preparação da pregação
145. A preparação da pregação é uma tarefa tão
importante que convém dedicar-lhe um tempo longo de estudo, oração, reflexão e
criatividade pastoral. Com muita amizade, quero deter-me a propor um itinerário
de preparação da homilia. Trata-se de indicações que, para alguns, poderão
parecer óbvias, mas considero oportuno sugeri-las para recordar a necessidade
de dedicar um tempo privilegiado a este precioso ministério. Alguns párocos
sustentam frequentemente que isto não é possível por causa de tantas
incumbências que devem desempenhar; todavia atrevo-me a pedir que todas as
semanas se dedique a esta tarefa um tempo pessoal e comunitário suficientemente
longo, mesmo que se tenha de dar menos tempo a outras tarefas também
importantes. A confiança no Espírito Santo que actua na pregação não é
meramente passiva, mas activa e criativa. Implica oferecer-se como
instrumento (cf. Rm 12, 1), com todas as próprias capacidades,
para que possam ser utilizadas por Deus. Um pregador que não se prepara não é
«espiritual»: é desonesto e irresponsável quanto aos dons que recebeu.
O culto da verdade
146. O primeiro passo, depois de invocar o Espírito
Santo, é prestar toda a atenção ao texto bíblico, que deve ser o fundamento da
pregação. Quando alguém se detém procurando compreender qual é a mensagem dum
texto, exerce o «culto da verdade». É a humildade do coração que reconhece que
a Palavra sempre nos transcende, que somos, «não os árbitros nem os
proprietários, mas os depositários, os arautos e os servidores». Esta atitude
de humilde e deslumbrada veneração da Palavra exprime-se detendo-se a estudá-la
com o máximo cuidado e com um santo temor de a manipular. Para se poder
interpretar um texto bíblico, faz falta paciência, pôr de parte toda a
ansiedade e atribuir-lhe tempo, interesse e dedicação gratuita. Há
que pôr de lado qualquer preocupação que nos inquiete, para entrar noutro
âmbito de serena atenção. Não vale a pena dedicar-se a ler um texto bíblico, se
aquilo que se quer obter são resultados rápidos, fáceis ou imediatos. Por isso,
a preparação da pregação requer amor. Uma pessoa só dedica um tempo gratuito e
sem pressa às coisas ou às pessoas que ama; e aqui trata-se de amar a Deus, que
quis falar. A partir deste amor, uma pessoa pode deter-se todo o
tempo que for necessário, com a atitude dum discípulo: «Fala, Senhor; o teu
servo escuta» (1 Sam 3, 9).
147. Em primeiro lugar, convém estarmos seguros de
compreender adequadamente o significado das palavras que
lemos. Quero insistir em algo que parece evidente, mas que nem sempre é tido em
conta: o texto bíblico, que estudamos, tem dois ou três mil anos, a sua
linguagem é muito diferente da que usamos agora. Por mais que nos pareça termos
entendido as palavras, que estão traduzidas na nossa língua, isso não significa
que compreendemos correctamente tudo o que o escritor sagrado queria exprimir.
São conhecidos os vários recursos que proporciona a análise literária: prestar
atenção às palavras que se repetem ou evidenciam, reconhecer a estrutura e o
dinamismo próprio dum texto, considerar o lugar que ocupam os personagens, etc.
Mas o objectivo não é o de compreender todos os pequenos detalhes dum texto; o
mais importante é descobrir qual é a mensagem principal, a mensagem
que confere estrutura e unidade ao texto. Se o pregador não faz este esforço, é
possível que também a sua pregação não tenha unidade nem ordem; o seu discurso
será apenas uma súmula de várias ideias desarticuladas que não conseguirão
mobilizar os outros. A mensagem central é aquela que o autor quis primariamente
transmitir, o que implica identificar não só uma ideia mas também o efeito que
esse autor quis produzir. Se um texto foi escrito para consolar, não deveria
ser utilizado para corrigir erros; se foi escrito para exortar, não deveria ser
utilizado para instruir; se foi escrito para ensinar algo sobre Deus, não
deveria ser utilizado para explicar várias opiniões teológicas; se foi escrito
para levar ao louvor ou ao serviço missionário, não o utilizemos para informar
sobre as últimas notícias.
148. É verdade que, para se entender adequadamente
o sentido da mensagem central dum texto, é preciso colocá-lo em ligação com o
ensinamento da Bíblia inteira, transmitida pela Igreja. Este é um princípio
importante da interpretação bíblica, que tem em conta que o Espírito Santo não
inspirou só uma parte, mas a Bíblia inteira, e que, nalgumas questões, o povo
cresceu na sua compreensão da vontade de Deus a partir da experiência vivida. Assim
se evitam interpretações equivocadas ou parciais, que contradizem outros
ensinamentos da mesma Escritura. Mas isto não significa enfraquecer a
acentuação própria e específica do texto que se deve pregar. Um dos defeitos
duma pregação enfadonha e ineficaz é precisamente não poder transmitir a força
própria do texto que foi proclamado.
A personalização da Palavra
149. O pregador «deve ser o primeiro a desenvolver
uma grande familiaridade pessoal com a Palavra de Deus: não lhe basta conhecer
o aspecto linguístico ou exegético, sem dúvida necessário; precisa de se
abeirar da Palavra com o coração dócil e orante, a fim de que ela penetre a
fundo nos seus pensamentos e sentimentos e gere nele uma nova mentalidade».
Faz-nos bem renovar, cada dia, cada domingo, o nosso ardor na preparação da
homilia, e verificar se, em nós mesmos, cresce o amor pela Palavra que
pregamos. É bom não esquecer que, «particularmente, a maior ou menor santidade
do ministro influi sobre o anúncio da Palavra». Como diz São Paulo, «falamos,
não para agradar aos homens, mas a Deus que põe à prova os nossos corações» (1
Ts 2, 4). Se está vivo este desejo de, primeiro, ouvirmos nós a
Palavra que temos de pregar, esta transmitir-se-á duma maneira ou doutra ao
povo fiel de Deus: «A boca fala da abundância do coração» (Mt 12,
34). As leituras do domingo ressoarão com todo o seu esplendor no coração do
povo, se primeiro ressoarem assim no coração do Pastor.
150. Jesus irritava-Se com pretensiosos mestres,
muito exigentes com os outros, que ensinavam a Palavra de Deus mas não se
deixavam iluminar por ela: «Atam fardos pesados e insuportáveis e colocam-nos
aos ombros dos outros, mas eles não põem nem um dedo para os deslocar» (Mt 23,
4). E o Apóstolo São Tiago exortava: «Meus irmãos, não haja muitos entre vós
que pretendam ser mestres, sabendo que nós teremos um julgamento mais severo»
(3, 1). Quem quiser pregar, deve primeiro estar disposto a deixar-se tocar pela
Palavra e fazê-la carne na sua vida concreta. Assim, a pregação consistirá na
actividade tão intensa e fecunda que é «comunicar aos outros o que foi
contemplado». Por tudo isto, antes de preparar concretamente o que vai dizer na
pregação, o pregador tem que aceitar ser primeiro trespassado por essa Palavra
que há-de trespassar os outros, porque é uma Palavra viva e eficaz,
que, como uma espada, «penetra até à divisão da alma e do corpo, das
articulações e das medulas, e discerne os sentimentos e intenções do coração» (Heb 4,
12). Isto tem um valor pastoral. Mesmo nesta época, a gente prefere escutar as
testemunhas: «Tem sede de autenticidade (...), reclama evangelizadores que lhe
falem de um Deus que eles conheçam e lhes seja familiar como se eles vissem o
invisível».
151. Não nos é pedido que sejamos imaculados, mas
que não cessamos de melhorar, vivamos o desejo profundo de progredir no caminho
do Evangelho, e não deixemos cair os braços. Indispensável é que o pregador
esteja seguro de que Deus o ama, de que Jesus Cristo o salvou, de que o seu
amor tem sempre a última palavra. À vista de tanta beleza, sentirá muitas vezes
que a sua vida não lhe dá plenamente glória e desejará sinceramente
corresponder melhor a um amor tão grande. Todavia, se não se detém com sincera
abertura a escutar esta Palavra, se não deixa que a mesma toque a sua vida, que
o interpele, exorte, mobilize, se não dedica tempo para rezar com esta Palavra,
então na realidade será um falso profeta, um embusteiro ou um charlatão vazio.
Em todo o caso, desde que reconheça a sua pobreza e deseje comprometer-se mais,
sempre poderá dar Jesus Cristo, dizendo como Pedro: «Não tenho ouro nem prata,
mas o que tenho, isto te dou» (Act 3, 6). O Senhor quer servir-Se
de nós como seres vivos, livres e criativos, que se deixam penetrar pela sua
Palavra antes de a transmitir; a sua mensagem deve passar realmente através do
pregador, e não só pela sua razão, mas tomando posse de todo o seu ser. O
Espírito Santo, que inspirou a Palavra, é quem «hoje ainda, como nos inícios da
Igreja, age em cada um dos evangelizadores que se deixa possuir e conduzir por
Ele, e põe na sua boca as palavras que ele sozinho não poderia
encontrar».
A leitura espiritual
152. Há uma modalidade concreta para escutarmos
aquilo que o Senhor nos quer dizer na sua Palavra e nos deixarmos transformar
pelo Espírito: designamo-la por «lectio divina». Consiste na leitura da
Palavra de Deus num tempo de oração, para lhe permitir que nos ilumine e
renove. Esta leitura orante da Bíblia não está separada do estudo que o
pregador realiza para individuar a mensagem central do texto; antes pelo
contrário, é dela que deve partir para procurar descobrir aquilo que essa
mesma mensagem tem a dizer à sua própria vida. A leitura espiritual
dum texto deve partir do seu sentido literal. Caso contrário, uma pessoa
facilmente fará o texto dizer o que lhe convém, o que serve para confirmar as
suas próprias decisões, o que se adapta aos seus próprios esquemas mentais. E
isto seria, em última análise, usar o sagrado para proveito próprio e passar
esta confusão para o povo de Deus. Nunca devemos esquecer-nos de que, por
vezes, «também Satanás se disfarça em anjo de luz» (2 Cor 11, 14).
153. Na presença de Deus, numa leitura tranquila do
texto, é bom perguntar-se, por exemplo: «Senhor, a mim que me
diz este texto? Com esta mensagem, que quereis mudar na minha vida? Que é que
me dá fastídio neste texto? Porque é que isto não me interessa?»; ou então: «De
que gosto? Em que me estimula esta Palavra? Que me atrai? E porque me atrai?».
Quando se procura ouvir o Senhor, é normal ter tentações. Uma delas é
simplesmente sentir-se chateado e acabrunhado e dar tudo por encerrado; outra
tentação muito comum é começar a pensar naquilo que o texto diz aos outros,
para evitar de o aplicar à própria vida. Acontece também começar a procurar
desculpas, que nos permitam diluir a mensagem específica do texto. Outras vezes
pensamos que Deus nos exige uma decisão demasiado grande, que ainda não estamos
em condições de tomar. Isto leva muitas pessoas a perderem a alegria do
encontro com a Palavra, mas isso significaria esquecer que ninguém é mais
paciente do que Deus Pai, ninguém compreende e sabe esperar como Ele. Deus
convida sempre a dar um passo mais, mas não exige uma resposta completa, se
ainda não percorremos o caminho que a torna possível. Apenas quer que olhemos com
sinceridade a nossa vida e a apresentemos sem fingimento diante dos seus olhos,
que estejamos dispostos a continuar a crescer, e peçamos a Ele o que ainda não
podemos conseguir.
À escuta do povo
154. O pregador deve também pôr-se à escuta do
povo, para descobrir aquilo que os fiéis precisam de ouvir. Um pregador é
um contemplativo da Palavra e também um contemplativo do povo. Desta forma,
descobre «as aspirações, as riquezas e as limitações, as maneiras de orar, de
amar, de encarar a vida e o mundo, que caracterizam este ou aquele aglomerado
humano», prestando atenção «ao povo concreto com os seus
sinais e símbolos e respondendo aos problemas que apresenta». Trata-se de
relacionar a mensagem do texto bíblico com uma situação humana, com algo que as
pessoas vivem, com uma experiência que precisa da luz da Palavra. Esta
preocupação não é ditada por uma atitude oportunista ou diplomática, mas é
profundamente religiosa e pastoral. No fundo, é uma «sensibilidade espiritual
para saber ler nos acontecimentos a mensagem de Deus», e isto é muito mais do
que encontrar algo interessante para dizer. Procura-se descobrir «o que o
Senhor tem a dizer nessas circunstâncias». Então a preparação da
pregação transforma-se num exercício de discernimento evangélico,
no qual se procura reconhecer – à luz do Espírito – «um “apelo” que Deus faz
ressoar na própria situação histórica: também nele e através dele, Deus chama o
crente».
155. Nesta busca, é possível recorrer apenas a
alguma experiência humana frequente, como, por exemplo, a alegria dum
reencontro, as desilusões, o medo da solidão, a compaixão pela dor alheia, a
incerteza perante o futuro, a preocupação com um ser querido, etc.; mas faz
falta intensificar a sensibilidade para se reconhecer o que isso realmente tem
a ver com a vida das pessoas. Recordemos que nunca se deve responder a
perguntas que ninguém se põe, nem convém fazer a crónica da actualidade
para despertar interesse; para isso, já existem os programas televisivos. Em
todo o caso, é possível partir de algum facto para que a Palavra possa
repercutir fortemente no seu apelo à conversão, à adoração, a atitudes
concretas de fraternidade e serviço, etc., porque acontece, às vezes, que
algumas pessoas gostam de ouvir comentários sobre a realidade na pregação, mas nem
por isso se deixam interpelar pessoalmente.
Recursos pedagógicos
156. Alguns acreditam que podem ser bons pregadores
por saber o que devem dizer, mas descuidam o como, a forma concreta
de desenvolver uma pregação. Zangam-se quando os outros não os ouvem ou não os
apreciam, mas talvez não se tenham empenhado por encontrar a forma adequada de
apresentar a mensagem. Lembremo-nos de que «a evidente importância do conteúdo
da evangelização não deve esconder a importância dos métodos e dos meios da
mesma evangelização». A preocupação com a forma de pregar também é uma atitude
profundamente espiritual. É responder ao amor de Deus, entregando-nos com todas
as nossas capacidades e criatividade à missão que Ele nos confia; mas também é
um exímio exercício de amor ao próximo, porque não queremos oferecer aos outros
algo de má qualidade. Na Bíblia, por exemplo, aparece a recomendação para se
preparar a pregação de modo a garantir uma apropriada extensão: «Sê conciso no
teu falar: muitas coisas em poucas palavras» (Sir 32, 8).
157. Apenas, para exemplificar, recordemos alguns
recursos práticos que podem enriquecer uma pregação e torná-la mais atraente.
Um dos esforços mais necessários é aprender a usar imagens na pregação, isto é,
a falar por imagens. Às vezes usam-se exemplos para tornar mais compreensível
algo que se quer explicar, mas estes exemplos frequentemente dirigem-se apenas
ao entendimento, enquanto as imagens ajudam a apreciar e acolher a mensagem que
se quer transmitir. Uma imagem fascinante faz com que se sinta a mensagem como
algo familiar, próximo, possível, relacionado com a própria vida. Uma imagem
apropriada pode levar a saborear a mensagem que se quer transmitir, desperta um
desejo e motiva a vontade na direcção do Evangelho. Uma boa homilia, como me
dizia um antigo professor, deve conter «uma ideia, um sentimento, uma imagem».
158. Já dizia Paulo VI que os fiéis «esperam muito
desta pregação e dela poderão tirar fruto, contanto que ela seja simples,
clara, directa, adaptada». A simplicidade tem a ver com a linguagem utilizada.
Deve ser linguagem que os destinatários compreendam, para não correr o risco de
falar ao vento. Acontece frequentemente que os pregadores usam palavras que
aprenderam nos seus estudos e em certos ambientes, mas que não fazem parte da
linguagem comum das pessoas que os ouvem. Há palavras próprias da teologia ou
da catequese, cujo significado não é compreensível para a maioria dos cristãos.
O maior risco dum pregador é habituar-se à sua própria linguagem e pensar que
todos os outros a usam e compreendem espontaneamente. Se se quer adaptar à
linguagem dos outros, para poder chegar até eles com a Palavra, deve-se escutar
muito, é preciso partilhar a vida das pessoas e prestar-lhes benévola atenção.
A simplicidade e a clareza são duas coisas diferentes. A linguagem pode ser
muito simples, mas pouco clara a pregação. Pode-se tornar incompreensível pela
desordem, pela sua falta de lógica, ou porque trata vários temas ao mesmo
tempo. Por isso, outro cuidado necessário é procurar que a pregação tenha
unidade temática, uma ordem clara e ligação entre as frases, de modo que as
pessoas possam facilmente seguir o pregador e captar a lógica do que lhes diz.
159. Outra característica é a linguagem positiva.
Não diz tanto o que não se deve fazer, como sobretudo propõe o que podemos
fazer melhor. E, se aponta algo negativo, sempre procura mostrar também um
valor positivo que atraia, para não se ficar pela queixa, o lamento, a crítica
ou o remorso. Além disso, uma pregação positiva oferece sempre esperança,
orienta para o futuro, não nos deixa prisioneiros da negatividade. Como é bom
que sacerdotes, diáconos e leigos se reúnam periodicamente para encontrarem,
juntos, os recursos que tornem mais atraente a pregação!
4. Uma evangelização para o aprofundamento
do querigma
160. O mandato missionário do Senhor inclui o apelo
ao crescimento da fé, quando diz: «ensinando-os a cumprir tudo
quanto vos tenho mandado» (Mt 28, 20). Daqui se vê claramente que o
primeiro anúncio deve desencadear também um caminho de formação e de
amadurecimento. A evangelização procura também o crescimento, o que implica
tomar muito a sério em cada pessoa o projecto que Deus tem para ela. Cada ser
humano precisa sempre mais de Cristo, e a evangelização não deveria deixar que
alguém se contente com pouco, mas possa dizer com plena verdade: «Já não sou eu
que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gal 2, 20).
161. Não seria correcto que este apelo ao
crescimento fosse interpretado, exclusiva ou prioritariamente, como formação
doutrinal. Trata-se de «cumprir» aquilo que o Senhor nos indicou como resposta
ao seu amor, sobressaindo, junto com todas as virtudes, aquele mandamento novo
que é o primeiro, o maior, o que melhor nos identifica como discípulos: «É este
o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei» (Jo 15,
12). É evidente que, quando os autores do Novo Testamento querem reduzir a
mensagem moral cristã a uma última síntese, ao mais essencial, apresentam-nos a
exigência irrenunciável do amor ao próximo: «Quem ama o próximo cumpre
plenamente a lei. (…) É no amor que está o pleno cumprimento da lei» (Rm 13,
8.10). De igual modo, São Paulo, para quem o mandamento do amor não só resume a
lei mas constitui o centro e a razão de ser da mesma: «Toda a lei se cumpre
plenamente nesta únicapalavra: Ama o teu próximo como
a ti mesmo» (Gal 5, 14). E, às suas comunidades, apresenta a vida
cristã como um caminho de crescimento no amor: «O Senhor vos faça crescer e
superabundar de caridade uns para com os outros e para com todos» (1 Ts 3,
12). Também São Tiago exorta os cristãos a cumprir «a leido Reino, de
acordo com a Escritura: Amarás o teu próximo como a ti mesmo»
(2, 8), acabando por não citar nenhum preceito.
162. Entretanto, este caminho de resposta e
crescimento aparece sempre precedido pelo dom, porque o antecede aquele outro
pedido do Senhor: «baptizando-os em nome...» (Mt 28, 19). A adopção
como filhos que o Pai oferece gratuitamente e a iniciativa do dom da sua graça
(cf. Ef 2, 8-9; 1 Cor 4, 7) são a condição
que torna possível esta santificação constante, que agrada a Deus e Lhe dá
glória. É deixar-se transformar em Cristo, vivendo progressivamente «de acordo
com o Espírito» (Rm 8, 5).
Uma catequese querigmática e
mistagógica
163. A educação e a catequese estão ao serviço
deste crescimento. Já temos à disposição vários textos do Magistério e
subsídios sobre a catequese, preparados pela Santa Sé e por diversos
episcopados. Lembro a Exortação Apostólica Catechesi tradendae (1979),
o Directório Geral para a Catequese (1997) e outros documentos
cujo conteúdo, sempre actual, não é necessário repetir aqui. Queria deter-me
apenas nalgumas considerações que me parece oportuno evidenciar.
164. Voltámos a descobrir que também na catequese
tem um papel fundamental o primeiro anúncio ou querigma, que deve
ocupar o centro da actividade evangelizadora e de toda a tentativa de renovação
eclesial. O querigma é trinitário. É o fogo do Espírito que se
dá sob a forma de línguas e nos faz crer em Jesus Cristo, que, com a sua morte
e ressurreição, nos revela e comunica a misericórdia infinita do Pai. Na boca
do catequista, volta a ressoar sempre o primeiro anúncio: «Jesus Cristo ama-te,
deu a sua vida para te salvar, e agora vive contigo todos os dias para te
iluminar, fortalecer, libertar». Ao designar-se como «primeiro» este anúncio,
não significa que o mesmo se situa no início e que, em seguida, se esquece ou
substitui por outros conteúdos que o superam; é o primeiro em sentido
qualitativo, porque é o anúncio principal, aquele que sempre se tem
de voltar a ouvir de diferentes maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a
anunciar, duma forma ou doutra, durante a catequese, em todas as suas etapas e
momentos. Por isso, também «o sacerdote, como a Igreja, deve crescer na
consciência da sua permanente necessidade de ser evangelizado».
165. Não se deve pensar que, na catequese, o querigma é
deixado de lado em favor duma formação supostamente mais «sólida». Nada há de
mais sólido, mais profundo, mais seguro, mais consistente e mais sábio que esse
anúncio. Toda a formação cristã é, primariamente, o aprofundamento do querigma que
se vai, cada vez mais e melhor, fazendo carne, que nunca deixa de iluminar a
tarefa catequética, e permite compreender adequadamente o sentido de qualquer
tema que se desenvolve na catequese. É o anúncio que dá resposta ao anseio de
infinito que existe em todo o coração humano. A centralidade do querigmarequer
certas características do anúncio que hoje são necessárias em toda a parte: que
exprima o amor salvífico de Deus como prévio à obrigação moral e religiosa, que
não imponha a verdade mas faça apelo à liberdade, que seja pautado pela
alegria, o estímulo, a vitalidade e uma integralidade harmoniosa que não reduza
a pregação a poucas doutrinas, por vezes mais filosóficas que evangélicas. Isto
exige do evangelizador certas atitudes que ajudam a acolher melhor o anúncio:
proximidade, abertura ao diálogo, paciência, acolhimento cordial que não
condena.
166. Outra característica da catequese, que se
desenvolveu nas últimas décadas, é a iniciação mistagógica, que
significa essencialmente duas coisas: a necessária progressividade da
experiência formativa na qual intervém toda a comunidade e uma renovada
valorização dos sinais litúrgicos da iniciação cristã. Muitos manuais e planificações
ainda não se deixaram interpelar pela necessidade duma renovação mistagógica,
que poderia assumir formas muito diferentes de acordo com o discernimento de
cada comunidade educativa. O encontro catequético é um anúncio da Palavra e
está centrado nela, mas precisa sempre duma ambientação adequada e duma
motivação atraente, do uso de símbolos eloquentes, da sua inserção num amplo
processo de crescimento e da integração de todas as dimensões da pessoa num
caminho comunitário de escuta e resposta.
167. É bom que toda a catequese preste uma especial
atenção à «via da beleza (via pulchritudinis)». Anunciar Cristo
significa mostrar que crer n’Ele e segui-Lo não é algo apenas verdadeiro e
justo, mas também belo, capaz de cumular a vida dum novo esplendor e duma
alegria profunda, mesmo no meio das provações. Nesta perspectiva, todas as
expressões de verdadeira beleza podem ser reconhecidas como uma senda que ajuda
a encontrar-se com o Senhor Jesus. Não se trata de fomentar um relativismo
estético, que pode obscurecer o vínculo indivisível entre verdade, bondade e
beleza, mas de recuperar a estima da beleza para poder chegar ao coração do
homem e fazer resplandecer nele a verdade e a bondade do Ressuscitado. Se nós,
como diz Santo Agostinho, não amamos senão o que é belo, o Filho feito homem,
revelação da beleza infinita, é sumamente amável e atrai-nos para Si com laços
de amor. Por isso, torna-se necessário que a formação na via
pulchritudinis esteja inserida na transmissão da fé. É desejável que
cada Igreja particular incentive o uso das artes na sua obra evangelizadora, em
continuidade com a riqueza do passado, mas também na vastidão das suas
múltiplas expressões actuais, a fim de transmitir a fé numa nova «linguagem
parabólica». É preciso ter a coragem de encontrar os novos sinais, os novos
símbolos, uma nova carne para a transmissão da Palavra, as diversas formas de
beleza que se manifestam em diferentes âmbitos culturais, incluindo aquelas
modalidades não convencionais de beleza que podem ser pouco significativas para
os evangelizadores, mas tornaram-se particularmente atraentes para os
outros.
168. Relativamente à proposta moral da catequese,
que convida a crescer na fidelidade ao estilo de vida do Evangelho, é oportuno
indicar sempre o bem desejável, a proposta de vida, de maturidade, de
realização, de fecundidade, sob cuja luz se pode entender a nossa denúncia dos
males que a podem obscurecer. Mais do que como peritos em diagnósticos
apocalípticos ou juízes sombrios que se comprazem em detectar qualquer perigo
ou desvio, é bom que nos possam ver como mensageiros alegres de propostas
altas, guardiões do bem e da beleza que resplandecem numa vida fiel ao
Evangelho.
O acompanhamento pessoal dos
processos de crescimento
169. Numa civilização paradoxalmente ferida pelo
anonimato e, simultaneamente, obcecada com os detalhes da vida alheia,
descaradamente doente de morbosa curiosidade, a Igreja tem necessidade de um
olhar solidário para contemplar, comover-se e parar diante do outro, tantas
vezes quantas forem necessárias. Neste mundo, os ministros ordenados e os
outros agentes de pastoral podem tornar presente a fragrância da presença
solidária de Jesus e o seu olhar pessoal. A Igreja deverá iniciar os seus
membros – sacerdotes, religiosos e leigos – nesta «arte do acompanhamento»,
para que todos aprendam a descalçar sempre as sandálias diante da terra sagrada
do outro (cf. Ex 3, 5). Devemos dar ao nosso caminhar o ritmo
salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e cheio de compaixão, mas que
ao mesmo tempo cure, liberte e anime a amadurecer na vida cristã.
170. Embora possa soar óbvio, o acompanhamento
espiritual deve conduzir cada vez mais para Deus, em quem podemos alcançar a
verdadeira liberdade. Alguns crêem-se livres quando caminham à margem de Deus,
sem se dar conta que ficam existencialmente órfãos, desamparados, sem um lar
para onde sempre possam voltar. Deixam de ser peregrinos para se transformarem
em errantes, que giram indefinidamente ao redor de si mesmos, sem chegar a lado
nenhum. O acompanhamento seria contraproducente, caso se tornasse uma espécie
de terapia que incentive esta reclusão das pessoas na sua imanência e deixe de
ser uma peregrinação com Cristo para o Pai.
171. Hoje mais do que nunca precisamos de homens e
mulheres que conheçam, a partir da sua experiência de acompanhamento, o modo de
proceder onde reine a prudência, a capacidade de compreensão, a arte de
esperar, a docilidade ao Espírito, para no meio de todos defender as ovelhas a
nós confiadas dos lobos que tentam desgarrar o rebanho. Precisamos de nos
exercitar na arte de escutar, que é mais do que ouvir. Escutar, na comunicação
com o outro, é a capacidade do coração que torna possível a proximidade, sem a
qual não existe um verdadeiro encontro espiritual. Escutar ajuda-nos a
individuar o gesto e a palavra oportunos que nos desinstalam da cómoda condição
de espectadores. Só a partir desta escuta respeitosa e compassiva é que se pode
encontrar os caminhos para um crescimento genuíno, despertar o desejo do ideal
cristão, o anseio de corresponder plenamente ao amor de Deus e o anelo de
desenvolver o melhor de quanto Deus semeou na nossa própria vida. Mas sempre
com a paciência de quem está ciente daquilo que ensinava São Tomás de Aquino:
alguém pode ter a graça e a caridade, mas não praticar bem nenhuma das virtudes
«por causa de algumas inclinações contrárias» que persistem. Por outras
palavras, as virtudes organizam-se sempre e necessariamente «in habitu»,
embora os condicionamentos possam dificultar as operações desses
hábitos virtuosos. Por isso, faz falta «uma pedagogia que introduza a pessoa
passo a passo até chegar à plena apropriação do mistério». Para se chegar a um
estado de maturidade, isto é, para que as pessoas sejam capazes de decisões
verdadeiramente livres e responsáveis, é preciso dar tempo ao tempo, com uma
paciência imensa. Como dizia o Beato Pedro Fabro: «O tempo é o mensageiro de
Deus».
172. Quem acompanha sabe reconhecer que a situação
de cada pessoa diante de Deus e a sua vida em graça é um mistério que ninguém
pode conhecer plenamente a partir do exterior. O Evangelho propõe-nos que se
corrija e ajude a crescer uma pessoa a partir do reconhecimento da maldade
objectiva das suas acções (cf. Mt 18, 15), mas sem proferir
juízos sobre a sua responsabilidade e culpabilidade (cf. Mt 7,
1; Lc 6, 37). Seja como for, um válido acompanhante não
transige com os fatalismos nem com a pusilanimidade. Sempre convida a querer
curar-se, a pegar no catre (cf. Mt 9, 6), a abraçar a cruz, a
deixar tudo e partir sem cessar para anunciar o Evangelho. A experiência
pessoal de nos deixarmos acompanhar e curar, conseguindo exprimir com plena
sinceridade a nossa vida a quem nos acompanha, ensina-nos a ser pacientes e
compreensivos com os outros e habilita-nos a encontrar as formas para despertar
neles a confiança, a abertura e a vontade de crescer.
173. O acompanhamento espiritual autêntico começa
sempre e prossegue no âmbito do serviço à missão evangelizadora. A relação de
Paulo com Timóteo e Tito é exemplo deste acompanhamento e desta formação
durante a acção apostólica. Ao mesmo tempo que lhes confia a missão de
permanecer numa cidade concreta para «acabar de organizar o que ainda falta» (Tt 1,
5; cf. 1 Tm 1, 3-5), dá-lhes os critérios para a vida pessoal
e a actividade pastoral. Isto é claramente distinto de todo o tipo de
acompanhamento intimista, de auto-realização isolada. Os discípulos
missionários acompanham discípulos missionários.
Ao redor da Palavra de Deus
174. Não é só a homilia que se deve alimentar da
Palavra de Deus. Toda a evangelização está fundada sobre esta Palavra escutada,
meditada, vivida, celebrada e testemunhada. A Sagrada Escritura é fonte da
evangelização. Por isso, é preciso formar-se continuamente na escuta da
Palavra. A Igreja não evangeliza, se não se deixa continuamente evangelizar. É
indispensável que a Palavra de Deus «se torne cada vez mais o coração de toda a
actividade eclesial». A Palavra de Deus ouvida e celebrada, sobretudo na
Eucaristia, alimenta e reforça interiormente os cristãos e torna-os capazes de
um autêntico testemunho evangélico na vida diária. Superámos já a velha
contraposição entre Palavra e Sacramento: a Palavra proclamada, viva e eficaz,
prepara a recepção do Sacramento e, no Sacramento, essa Palavra alcança a sua
máxima eficácia.
175. O estudo da Sagrada Escritura deve ser uma
porta aberta para todos os crentes. É fundamental que a Palavra revelada
fecunde radicalmente a catequese e todos os esforços para transmitir a fé. A
evangelização requer a familiaridade com a Palavra de Deus, e isto exige que as
dioceses, paróquias e todos os grupos católicos proponham um estudo sério e
perseverante da Bíblia e promovam igualmente a sua leitura orante pessoal e
comunitária. Nós não procuramos Deus tacteando, nem precisamos de esperar que Ele
nos dirija a palavra, porque realmente «Deus falou, já não é o grande
desconhecido, mas mostrou-Se a Si mesmo». Acolhamos o tesouro sublime da
Palavra revelada!
Texto
proveniente da página http://pt.radiovaticana.va/news/2013/11/26/primeira_exorta%C3%A7%C3%A3o_apost%C3%B3lica_do_papa_francisco/bra-750057
do
site da Rádio Vaticano
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