domingo, 4 de março de 2012

Comentário Exegético – II Domingo da Quaresma – Ano B


Comentário Exegético – II Domingo da Quaresma – Ano B

EPÍSTOLA (Rm 8, 31b-34)

(pe. Ignácio, dos padres escolápios)
INTRODUÇÃO: O trecho de hoje constitui um canto de júbilo de Paulo como conclusão do que anteriormente escreveu. O Pai que entregou seu Filho e Cristo, que deu sua vida por nós, não negarão quanto possamos necessitar para a salvação e glorificação final dos eleitos. Pai e Filho deram tudo para que isso acontecesse  e se tornaram deste modo fundamento radical de nossa verdadeira esperança, como já o tinha declarado Isaías no AT: Perto está o que me justifica; quem contenderá comigo? Compareçamos juntamente; quem é meu adversário? Chegue-se para mim (50, 8). Vejamos a interpretação versículo a versículo.
QUEM CONTRA NÓS? Que, pois, diremos em relação a estas coisas?  Se (o) Deus em nosso favor, quem contra nós? (31). Quid ergo dicemus ad haec si Deus pro nobis quis contra nos. ESTAS COISAS: Neste capítulo oitavo, Paulo fala da nova vida do espírito como um dom gracioso de Deus que transforma o cristão em seu filho e herdeiro do céu. Daí a esperança cristã, fundada em que estamos seguros de que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito (8, 28). É, pois, com esta confiança que o apóstolo afirma como corolário óbvio e terminal: Se Deus em nosso favor, quem pode estar contra nós? E aqui se inicia o que os comentaristas chamam de hino da esperança cristã. DEUS É A FAVOR: Nada temos a temer das tribulações e poderes do mundo, já que nada nos pode separar do amor que Deus nos tem e que o demonstrou entregando  a vida de seu Filho. Deus assim optou pela salvação do homem: quem pode ser contrário a esta determinação? Pela parte de Deus os poderes do mundo já estão vencidos como Josué e Caleb declaravam aos israelitas que estavam para entrar na terra prometida: Não tenham medo dessa gente! Havemos de derrotá-los facilmente. Não têm quem os proteja ao passo que nós temos o Senhor ao nosso lado! Não tenham medo deles! (Nm 14,9).
A ENTREGA DO FILHO: O qual certamente do próprio Filho não poupou; mas, em proveito de todos nós, o entregou. Como também todas as coisas não nos dará gratuitamente?(32). Qui etiam Filio suo non pepercit sed pro nobis omnibus tradidit illum quomodo non etiam cum illo omnia nobis donabit. Nesta afirmação, que constitui a base de nossa esperança, Paulo encontra a raiz do amor imensurável de Deus: a escolha da salvação dos inimigos através da morte temporal do seu verdadeiro e único Filho: Nós, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho (Rm 5, 6), que foi entregue à morte por causa dos nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação (Rm 4, 25). Essa entrega é a máxima doação que poderia ser exigida. Assim o declara o anjo a Abraão em Gn 22, 12: Não estendas a tua mão sobre o moço, e não lhe faças nada; porquanto agora sei que temes a Deus, e não me negaste o teu filho, o teu único filho. Por isso, Paulo tira uma consequência prática e inevitável: Quem deu o máximo, não estará disposto a entregar tudo o demais de uma forma desinteressada? Porque a ENTREGA DO FILHO foi um presente gratuito de Deus, que os anjos cantavam como um ato de boa vontade divina: a paz oferecida aos homens no nascimento do seu Salvador (Lc 2, 14). No amor e no perdão, que constitui o máximo degrau do amor, sempre encontramos que Deus se adianta ao homem, até instituir um sacramento para perdoar todo pecado. O único pecado que não será perdoado é o que os anjos cometeram e que o homem pode cometer contra o Espírito Santo (Mt 12, 32). Consiste este em se rebelar contra a bondade de Deus e rejeitá-la, como se o bem absoluto divino fosse um mal presente para a criatura. É optar em definitivo, por uma ordem moral contrária à de Deus, porque o bem de Deus não é nosso bem e por isso escolhemos o nosso bem, independente da bondade divina: é o não serviam [não servirei] de Lúcifer, que denota seu orgulho e independência. Nas palavras da antiga serpente, de nome Diabo e Satanás (Ap 12, 9) a tentação foi feita com as mesmas ideias senão palavras, com as quais ele claudicou: sereis como deuses, sabendo o bem e o mal (Gn 3,5). Sendo que o sabendo [do yadah<03045> hebraico, que o grego traduz por ginöskö<1097>] tem a tradução de experimentar, realizar na prática, o qual indica uma absoluta independência de Deus que a tradição católica traduz pelo não serviam. A queda de Satanás e seus anjos, segundo o CIC (392), consiste na eleição livre destes espíritos criados, que rejeitaram radical e irrevogavelmente a Deus e seu Reino… É o caráter irrevogável de sua eleição e não um defeito da infinita misericórdia o que faz que o pecado dos anjos não seja perdoado (393). A isto comenta S. João Damasceno: Não existe arrependimento para eles, como não existe arrependimento para os homens depois da morte. Segundo S. Faustina Kowaska, Jesus respondeu sua pergunta, por que os anjos foram castigados imediatamente depois do pecado, dizendo: Por seu profundo conhecimento de Deus. Nenhum homem na terra, embora seja um grande santo, tem tal conhecimento de Deus como um anjo. A mesma santa escreve: Satanás não quer reconhecer que Deus é bom. E em outra ocasião: Satanás pode vestir o manto da humildade, mas não é capaz e de vestir o manto da obediência. Os escritos da santa confirmam a tradição do não serviam. Feita esta divagação, vemos que a causa da rebelião angélica é que eles deviam aceitar uma ordem universal em que o segundo depois de Deus, era um homem e não um anjo: Quando introduz no mundo o primogênito, diz: E todos os anjos de Deus o adorem (Hb 1, 6). Mas esse homem fez o que nenhum anjo rebelde aceitaria: 1º) Humilhou-se. 2º) Obedeceu. E essa obediência foi a mais sofrida e humilhante do mundo na sua época, como diz Paulo: Sendo obediente até à morte, e morte de cruz (Fp 2,8). Nossa salvação está nesse símbolo [a cruz] que outrora foi degradante e assim o viu o diabo, mas que é vitória e salvação. GRATUITAMENTE: O verbo grego é charisetai [<8483>=donabit] indica uma doação gratuita, um favor ou mercê não devida, mas o obtida por graciosa condescendência. É assim que recebemos as diversas graças de Deus após termos conseguido a base das mesmas, que é a entrega do Filho para nosso resgate e serviço, como Ele afirmou: o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate por muitos (Mt 20, 28).
DEUS NOSSO DEFENSOR: Quem presenteará cargos em contra dos eleitos de Deus, sendo Deus o justificador (33). Quis accusabit adversus electos Dei Deus qui iustificat. PRESENTEARÁ CARGOS: É o verbo egkalesei [<1458>=accusabit] como vemos em At 19, 38 que tem um significado técnico como termo forense: Mas, se Demétrio e os artífices que estão com ele têm alguma coisa contra alguém, há audiências e há procônsules: que se acusem uns aos outros. Ou como diz Paulo diante do rei Agripa: por esta esperança, ó rei Agripa, eu sou acusado pelos judeus (At 26, 6). Nesse julgamento imaginário e previsível, em frente dos acusadores está a defesa divina, que chama precisamente defensor [paraklëtos] a seu Espírito derramado em sua Igreja: eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Defensor [paraklëtos], para que fique convosco para sempre (Jo 14, 16). Já Isaías no AT clamava: Perto está o que me justifica; quem contenderá comigo? Compareçamos juntamente; quem é meu adversário? Chegue-se para mim. Eis que o Senhor Deus me ajuda; quem há que me condene? (Is 60, 6-9). Eram tempos de perseguição os da carta, em que precisamente os acusadores em nome da lei divina eram os judeus, filhos da promessa. Diante desse quadro acusador está a verdadeira história do cristianismo em que o Messias testemunha com sua vida a verdade de seu anúncio, como dirá Paulo na continuação, e vemos refletido em Ap 12, 10-11: Ouvi uma grande voz no céu, que dizia: Agora é chegada a salvação, e a força, e o reino do nosso Deus, e o poder do seu Cristo; porque já o acusador de nossos irmãos é derrubado, o qual diante do nosso Deus os acusava de dia e de noite. E eles o venceram pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do seu testemunho; e não amaram as suas vidas até a morte.
TRIUNFO DE CRISTO: Quem os condenará? (sendo) Cristo o morto, antes bem o ressuscitado; o qual também está à direita de (o) Deus, o qual também está intercedendo por nós (34). Quis est qui condemnet Christus Iesus qui mortuus est immo qui resurrexit qui et est ad dexteram Dei qui etiam interpellat pro nobis. De sua afirmação – Deus é o defensor – Paulo recopila os fatos mais sobressalentes: a morte do Messias, a sua ressurreição e o seu atual estatus supremo para poder ser verdadeiro intercessor. Na epístola aos hebreus lemos de Cristo: Olhando para Jesus, autor e consumador da fé, o qual, pelo gozo que lhe estava proposto, suportou a cruz, desprezando a afronta, e assentou-se à destra do trono de Deus (12, 2). O qual, sendo o resplendor da sua glória, e a expressa imagem da sua pessoa, e sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, havendo feito por si mesmo a purificação dos nossos pecados, assentou-se à destra da majestade nas alturas (1, 3). E para terminar sua ação salvífica: Ora, a suma do que temos dito é que temos um sumo sacerdote tal, que está assentado nos céus à destra do trono da majestade (8,1). Porque Cristo não entrou num santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para agora comparecer por nós perante a face de Deus (7, 24). Com estas citações vemos a doutrina comum que afirma a morte de Cristo sendo motivo de salvação, como causa de intercessão na destra de Deus por todos os eleitos ou salvos.

EVANHELHO (Mc 9, 2-10)

Lugares paralelos Mt 17, 1-13 e Lc 9, 28-36

A TRANSFIGURAÇÃO

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)
E DEPOIS DE SEIS DIAS (1 a).  Et post dies sex. Marcos e Mateus coincidem no tempo de seis dias que são contados após a declaração de Pedro sobre o messiado de Jesus. Lucas determina a origem da contagem do tempo, mas o intervalo é determinado: Passaram, pois, após estas palavras [a declaração de Pedro e o primeiro anúncio de Jesus de sua paixão] como oito dias.
TOMA JESUS A PEDRO, A JACOBO E A JOÃO (1 b): Adsumit Iesus Petrum et Iacobum et Iohannem. Mateus dirá que este último era irmão do anterior e Lucas coloca o nome de João antes do nome de seu irmão. Em todos os textos gregos o nome deste último é Iacobos. Este nome é o mesmo que Jacob [Ya`aqob < 03290>= Iaköb <2384>]. O nome português Tiago, deriva do latim que por sua vez é uma latinização do nome hebraico Jacó [suplantador] porque nascendo depois de seu irmão gêmeo Esaú o suplantou por meio de um prato de lentilhas como primogênito herdeiro da herança do pai. Santo Iago na pronúncia romance tornou-se Sant’Iago e daí São Tiago, o moderno antropônimo em português e espanhol Tiago. Por uma falsa etimologia derivou a palavra San Diego originando assim o nome de Diogo. Com o decorrer do tempo o nome evoluiu em diversas línguas mantendo-se como Jakob em alemão, Jacques em francês, e James em inglês. De Jacome nasce o Jame  ou Jaume  e finalmente o Jaime que prevalece nos romances orientais da península ibérica. Pedro é o novo nome dado a Simão, filho de Jonas por Jesus que Mateus narra em 17, 18 e que o quarto evangelista dirá será chamado de Kefas (que quer dizer rocha – Jo 1, 42). João sabemos que é o irmão de Tiago e filho, portanto, de Zebedeu. Estes três discípulos foram os que Jesus escolheu para momentos especiais como a ressurreição da filha de Jairo (Mc 5, 37) e a sua agonia em Getsêmani (Mc 14, 33).
E OS FAZ SUBIR À PARTE, A SÓS, A UM MONTE ALTO (1c): Et ducit illos in montem excelsum seorsum solos. Lucas acrescenta para orar. Destaca Marcos a eleição e a particularidade de estar os quatro a sós, fora de qualquer outra pessoa que pudesse ser tomada como visão acompanhante a Jesus. Nada se diz da geografia do monte nem do nome do mesmo. Só que era alto. A tradição aponta o monte Tabor, um monte, cônico quase esférico,  que se levanta solitário frente à planície de Esdrelon. Os árabes o denominam de Jebel et Tur [monte dos montes]. Segundo vários estudiosos o monte foi lugar de cultos idolátricos a Baal Sedek [o senhor da justiça]. Recentes escavações confirmam a existência de um templo dórico na montanha. É por essa razão que a bíblia proíbe subir aos montes para orar, pois eles estavam dedicados às divindades pagãs. No AT o livro de Josué coloca o Tabor como ponto de convergência dos limites de três tribos [Zabulon, Neftali e Issacar] (cp 19). Em muitas religiões as montanhas tinham um caráter sagrado. Os israelitas não foram exceção. Foi nos montes Sinai e Horeb que Jahveh apareceu a Moisés e a Elias. E serão precisamente estes dois antigos profetas que aparecem a Jesus num outro monte: o Tabor. No episódio de Débora (Jz 4 e 5 ) que sucedeu no arredores do monte Tabor, vemos como no Tabor existia um culto a Jahveh (4, 6), pois manda as tropas se reunirem no monte, não para lutar mas para rezar antes da batalha. Porque era o monte em que o redator de Dt 33, 18-19 escreve como bênçãos de Moisés: Prospera Zabulon em tuas expedições e tu Issacar em tuas tendas! Na montanha em que o povo se reúne para pregar, eles oferecem sacrifícios. Tabor era a única montanha em que ambas as tribos tinham como fronteira comum. O Tabor era a montanha em que os madianitas mataram os irmãos de Gedeão (Jz 8, 18) depois de Débora. O ídolo da montanha parece que foi restaurado porque as tribos do norte continuaram a praticar um certo sincretismo de culto, iniciado com Jeroboão (930-910). Debelada a idolatria por Elias, não parece que teve um êxito total e assim o profeta Oseias na segunda metade do século VIII clama: Ouvi isto, sacerdotes, atende, casa de Israel, …fostes um laço para Masfa e uma rede estendida sobre o Tabor (Os 5,1). Jeremias considera o Tabor, junto com o monte Carmelo, como símbolos de preeminência, comparando a superioridade de Nabucodonosor  como o Tabor entre as montanhas e o Carmelo sobre o mar (48, 18). Finalmente no salmo 89: Tabor e Hermon se rejubilam a teu nome [Javé] (versículo 13). Não era um monte qualquer. Era um monte com uma tradição javista particular que tinha sido retomada após um parêntese de sincretismo idolátrico. Jesus quer com sua  escolha, mostrar um paralelismo exemplar com Moisés e Elias.
E SE TRANSFIGUROU DIANTE DELES(1 d). Et transfiguratus est coram ipsis. A palavra empregada por Marcos  é [metermorfôthe<3339>] derivada de meta [entre ou indicando uma transferência ou sequência] e morphóô [formar, modelar adaptar], indicando uma transformação do sujeito de maneira permanente, à diferença de metaschêmatizö, mudar ou modificar o aspecto de modo temporal. Metemorphöthe é a palavra usada por Mateus. Lucas, porém, usa uma outra maneira de descrever o fenômeno da transfiguração: e aconteceu ao estar ele orando, a aparência de seu rosto, outra (Lc 9, 29). A tradução é o mais literal possível.  Marcos diz: E foi transfigurado na sua presença. A voz passiva do verbo indica uma ação divina. E segundo o mesmo evangelista a transformação ou transfiguração deu-se na presença dos três discípulos. A Vulgata traduz transfiguratus est que as vernáculas traduzem por foi transfigurado, ou mudou de aspecto.
DESCRIÇÃO DO FENÔMENO: Marcos escreve: E suas vestes tornaram-se cintilantes [stilbonta<4744>>, a splendéntia latina], brancas em extremo, como neve, de modo que pisoeiro [ypsêlon<5308>, fullo latino] algum na terra poderia embranquecer (3). Et vestimenta eius facta sunt splendentia candida nimis velut nix qualia fullo super terram non potest candida facere. A) O ROSTO [prosopon]: O grego stilbô, do qual temos o particípio stilbonta, indica brilhar, de modo que o planeta Mercúrio era chamado stilbontes, o brilhante. Mateus dirá que seu rosto  brilhou [emitia luz,  elampsen<2989>] como o sol (17, 2). Lucas dirá que o aspecto do seu rosto era outro (9, 29). De tudo isso podemos afirmar que o corpo de Jesus foi transformado em corpo de luz [doxa<1391> grego, gloria latino, que se traduz em claritas em Lc 2, 9 ou majestas em 9, 31], como diz Paulo dos ressuscitados após falar dos diversos brilhos dos corpos, tanto celestes como terrestres (1 Cor 15, 40), e que no caso dos ressuscitados serão reluzentes de glória (1 Cor 15, 43). Essa glória [doxa ou majestas] é o resplendor com o qual foram vistos os dois personagens que apareceram junto a Jesus e do qual ele também participava (Lc 9, 31-32), pois segundo Mateus, seu rosto brilhava como o sol. Essa doxa da qual  Pedro dirá que o temos visto em todo seu esplendor (2 Pd 1, 16). Essa mesma doxa,  majestas, ou resplendor, era a que os israelitas viram no rosto de Moisés [dedoxasmenê ê opsis, resplandecente a aparência] após sair este da tenda onde se comunicava com Jahveh (Êx 34. 30). O texto original usa o verbo  kâran, [que significa emitir chifres e simbolicamente emitir raios de luz] como vemos na famosa estátua de Moisés de Miguel Ângelo. A tradução inglesa NIV (New International Version), muito fiel aos textos massorético e grego, diz: his face was radiant [sua face estava radiante]. É o que os evangelistas dizem sobre Jesus e os dois personagens que com ele estavam. Os chifres eram símbolo da divindade, porque eram nos animais, o touro, a força, o poder, que se atribuía aos deuses. E se, como em Moisés, eram resplandecentes, o caso não admitia dúvidas. Era o poder divino que era transmitido a Moisés no decurso de sua conversa com Yahveh no tabernáculo. Não esqueçamos isto, que comentaremos mais tarde. B) OS VESTIDOS, [himátia<2440> , vestimenta, vestidos ou garments], são os vestidos em termos gerais, embora como particularidade se usa também no lugar do clamis, clâmide militar  ou manto em geral. E suas vestes tornaram-se brilhantes, extremamente brancas como a neve, como nenhum alvejante da terra poderia branquejar (3). Mateus dirá que se tornaram brancas como a luz (17, 2). Lucas fala do vestuário no sentido de sua vestimenta, branca reluzente (9, 29).  Vamos explicar o alvejante de Marcos. Traduzido por fullo latino [pisoeiro], ou seja, o artesão que na base de golpes [no século XVIII substituído por uma máquina], desengraxava e amaciava os panos para depois serem alvejados com um alvejante, que recebe em inglês o nome de fuller´s earth, à semelhança do conjunto de cinzas que como lixívia [ou barrela], usavam nossas avós. Poderíamos traduzir pisoeiro [espanhol bataneiro] sobre a terra por Fuller’s earth inglês, e, portanto alvejante? Uma outra indiscrição: o bater dos pisões era feito por nossas avós batendo à mão, na tábua, as diversas peças de roupa.
AS DUAS APARIÇÕES: E foi visto por eles Elias com Moisés e estavam conversando com Jesus (3). Et apparuit illis Helias cum Mose et erant loquentes cum Iesu.  A tradução é direta conservando tempos e pessoas do original. Mateus diz: E eis que foram vistos por eles Moisés e Elias com ele falando (17, 3). Em Lucas encontramos: E eis que dois homens conversavam com ele, os quais eram Moisés e Elias (9, 3). A pergunta é como sabiam os três discípulos que eram precisamente Moisés e Elias? Os judeus não tinham, como nós, figuras em que se apoiar para distinguir os patriarcas e profetas. Logo ou foi no decurso da fala entre as três figuras ou foi depois o próprio Jesus que, perguntado, desvendou a personalidade de seus dois companheiros. Moisés era o protótipo da antiga lei, o maior profeta de Yahveh, conhecido e admirado como tal pelos judeus. Elias tinha sido o restaurador da lei e do judaísmo em tempos em que a idolatria parecia ter tomado a quase totalidade dos pensamentos dos israelitas de seu tempo. Sou o único dos profetas de Yahveh dirá ele antes do teste do Carmelo (1 Rs 18, 22). Ambos representavam a Lei: um, no seu fundamento; outro, na sua reabilitação. No mínimo, Jesus estava no mesmo nível que os dois profetas que formavam a coluna da religião de Israel. Somente por Lucas sabemos a matéria da conversa: A saída [exodos, exitus, morte] dEle a ponto de ser realizada em Jerusalém.
O DESPERTAR: E respondendo Pedro disse a Jesus: Rabbi é bom nós estarmos aqui. E façamos três tendas: para ti uma, para Moisés uma e para Elias uma (4). Et respondens Petrus ait Iesu rabbi bonum est hic nos esse et faciamus tria tabernacula tibi unum et Mosi unum et Heliae unum.  Respondendo, pois, Pedro, disse a Jesus: Senhor é bom nós estarmos aqui. Se quiseres, façamos aqui três tendas: para ti uma, e para Moisés uma, e uma para Elias (Mt 17, 4). Pedro e os que com ele estavam pesados de sono, havendo acordado, viram sua glória e os dois homens estando de pé com ele (Lc 9, 32). E aconteceu ao se afastar eles dEle, disse Pedro a Ele: Mestre, é bom  nós estarmos aqui. Portanto façamos três tendas:  Uma para ti, para Moisés uma e uma para Elias (Lc 9, 33 b). Como vemos há pouca diferença entre os relatos. Marcos conserva a palavra primitiva de Rabbi [meu grande no original, ou meu Mestre no sentido da época], entanto Lucas usa o Kyrios, senhor ou epistatês [que está sobre, doutor ou mestre]. Segundo Lucas, os apóstolos estavam dormindo e se inteiraram da cena ao despertar. É então que viram a glória [doxa, majestas ou  o resplendor]  que rodeava os personagens na sua frente. Doxa,  que Lucas aqui só parece afirmar de Jesus, e que corrobora as suas palavras do versículo 29 referido unicamente à transformação de Jesus. A doxa tem dois sentidos: o espiritual, no sentido de reputação, fama  (Jo 5, 41); e outro no sentido material, de resplendor, brilho, luminosidade e que o latim traduz por claritas ou majestas, como sendo uma visão da luz inacessível em que habita a divindade (1 Tm 6, 16). Neste sentido, devemos interpretar Lc 9, 29. Assim devemos entender os dois testemunhos visuais em primeira pessoa, dos dois apóstolos que viram a glória no monte Tabor: e nós vimos a sua glória [doxan] Jo 1, 14 e não foi seguindo fábulas sutis, mas por termos sido testemunhas de sua majestade [megaleistetos, magnitudinis] (2 Pd 1, 16) que explicará como sendo a glória que recebeu pela voz da Glória Excelsa [tës megaloprepous doxës, a magnífica glória], que disse: este é o meu Filho, o amado (idem 17).
O MEDO: Pois não sabia que falar, já que estavam aterrados [ekfoboi, timóre extérriti, sobrecarregados de temor] (6). Non enim sciebat quid diceret erant enim timore exterriti. Lucas dirá que o motivo do medo era porque foram envolvidos por uma nuvem. As duas coisas podem ser perfeitamente certas. Em certa ocasião, contava uma pessoa que teve um sono muito particular: apareceu uma figura luminosa, com cores nunca vistas, extremamente bela, que representava o diabo e apesar de sua beleza de figura de luz, a voz interior que não foi pronunciada, mas sentida, eu te destruirei, deixou-lhe aterrorizado de modo que seu corpo seguia tremendo após despertar da visão, até meia hora mais tarde. Na realidade, não foi a voz, mas a presença que tinha alguma coisa de oposição violenta, indescritível, como a presença do mal, a que produziu o terror. Sabemos como uma criança produz em nós, carinho e amor, como um malvado produz pavor. Não sabemos a causa, mas sempre que lemos relatos de aparições de anjos, as mesmas insistem em dizer: não tenhais medo (vide o anjo às mulheres Mt 28, 4-5, Zacarias em Lc 1, 12 e os pastores em 2, 9-10). A explicação do absurdo das tendas é unicamente dada por Marcos.
A NUVEM: E apareceu uma nuvem fazendo sombra sobre eles (6). Et facta est nubes obumbrans eos et venit vox de nube dicens hic est Filius meus carissimus audite illum. Ainda estando falando ele [Perdo], eis uma nuvem luminosa os ocultou (Mt 17, 5 a). Dizendo ele estas coisas, surgiu uma nuvem e fez sombra sobre eles; e temeram ao entrarem dentro da nuvem (Lc 9, 34). Essa nuvem não era uma nuvem escura, mas luminosa [foteinê, lúcida latino] segundo Mateus, sendo que tanto Marcos como Lucas não descrevem sua natureza.  Temos, pois, que era uma nuvem de luz e que ressaltava mais pela hora da visão: noite ou pouco antes do amanhecer. O verbo episkiazö [episkiazousa autois, obúmbrans eos] que também usa Lucas, não significa necessariamente fazer sombra, que é seu sentido material, mas pode ser traduzido por toldar, encobrir, os rodeou ou cercou; em definitivo, os ocultou ou os envolveu como traduzem os evangélicos, pois poderíamos pensar que fazendo sombra a nuvem era escura e o tempo era de dia, tudo então está contra os textos recebidos.
A VOZ: E saiu uma voz da nuvem dizendo: Este é o Filho [yios] meu, o amado [o agapëtos]. A ele ouvi [akouete] (6). Et facta est nubes obumbrans eos et venit vox de nube dicens hic est Filius meus carissimus audite illum. E eis uma voz dentro da nuvem dizendo: Este é o filho meu, o amado, em quem tive minha complacência. A ele ouvi (Mt 17, 5).  E surgiu uma voz de dentro da nuvem dizendo: este é o filho meu, o amado. A ele ouvi (Lc 9, 35). Como vemos os três relatos são até literalmente iguais. A palavra filho [‘yios, filius latino] designa o filho, dando  como preeminência a legalidade da descendência, mais do que a biológica que tem como representativa a palavra teknon que representa  mais o aspecto biológico do descendente. A palavra ‘o agapêtós, é traduzida ao latim por carissimus em Marcos, dilectus em Mateus e Lucas. Mais parece uma palavra legal, técnica, que indica o herdeiro, o único. A passagem é uma repetição da teofania do batismo com as mesmas duas palavras gregas [‘yuiós e agapêtós] que são traduzidas ao latim por filius e dilectus. Unicamente que no latim e na maioria das traduções vernáculas perdem-se as ênfases do grego com os artigos determinantes. A tradução própria seria o filho meu, o amado. No batismo a voz do Pai encontra suas delícias nele. No monte, o Pai pede obediência ao filho. Duas questões podemos deduzir desta última intervenção: 1a) O Filho era natural, ou significava unicamente uma filiação como a dos reis do AT? Porque também em Sl 2, 7 o rei, recém-coroado, recebe de Jahvé o mesmo apodo de filho. Talvez o sobrenome de o amado, único, seja a solução. Não existe no AT a união de filho com amado, e só encontramos as passagens do novo testamento dos evangelhos nas duas teofanias relatadas. 2a) Que aqui esse Filho referido a Jesus, toma o papel de Moisés e de Elias juntos. A voz do Pai, que é Deus, o indica como única fonte de direito por assim dizer. Ele se transforma em representante único de Deus na terra e a voz de Jesus é a voz de Deus.
JESUS SÓ: E repentinamente, tendo olhado ao redor, não mais viram ninguém senão Jesus só com eles (7). Et statim circumspicientes neminem amplius viderunt nisi Iesum tantum secum. E tendo ouvido, os discípulos caíram sobre o rosto deles e temeram muito (6). E,  aproximado, Jesus os tocou e disse: Levantai e não temais (7). Havendo, pois, levantado seus olhos, ninguém viram, senão Jesus unicamente (8) (Mt 17, 6-8). E ao acontecer a voz encontrou-se Jesus só (Lc 9, 36). Os evangelistas enfatizam o fato de que uma vez ouvida a voz do Pai, Jesus ficou sozinho, desaparecendo as outras duas figuras. Pode ser que a realidade seja uma imagem futura da nova era. Nem Moisés nem Elias seriam os condutores do novo povo de Israel. Jesus era o único a ser ouvido e seguido. De fato, quem dos cristãos de hoje se lembra de ambos os profetas do AT, como sendo os líderes de sua religião?
O SILÊNCIO: E como estivessem descendo da montanha, recomendou-lhes para que a ninguém contassem o que tinham visto, senão quando o filho do homem tivesse ressuscitado dos mortos (8). Et descendentibus illis de monte praecepit illis ne cui quae vidissent narrarent nisi cum Filius hominis a mortuis resurrexerit. E estando descendo da montanha mandou-lhes Jesus dizendo: a ninguém digais o visto até que o filho do homem tenha ressuscitado dos mortos (Mt 17, 9). E eles calaram e a ninguém revelaram nada naqueles dias das coisas que viram (Lc 9, 35 b). Realmente o silêncio dos apóstolos era fundamental. Primeiro, porque, sendo poucas as testemunhas, a sua fala poderia favorecer um descrédito geral. Segundo, porque unicamente a ressurreição forneceria luz suficiente para entender tanto a paixão como a  transcendência da epifania do Tabor e o significado da Ressurreição.
A DÚVIDA: e guardaram entre si a revelação, questionando o que é levantar-se dentre os  mortos (9). Et verbum continuerunt apud se conquirentes quid esset cum a mortuis resurrexerit. Mateus e Lucas nada comentam sobre esta dúvida dos apóstolos. O relato de Marcos aponta a um relato de primeira mão. Com isto termina uma das páginas mais carregadas de significado teológico dos evangelhos.
PISTAS: 1) Vemos na montanha uma clara alusão às ideias dominantes na época. Jahvé e os deuses da bacia mediterrânea, como eram os dos gregos e romanos, habitavam de modo especial nas montanhas. Moriá em Jerusalém, o Olimpo na Grécia, e o Capitólio em Roma. Também Yahveh escolheu um monte para manifestar a sua divindade: Seria o Horeb [=seco] (Êx 17,6) ou Sinai [=do deus Sin, senhor da sabedoria, representante da lua] (Êx 19, 11). A mudança de nome foi sem dúvida feita pela tradição sacerdotal para evitar o topônimo politeísta que recordava a palavra Sinai. Também Elias, fugindo da ira de Jezabel, subiu ao monte Horeb e viu passar o Senhor no sussurro de um sopro suave (1 Rs 19, 12). A montanha, como o deserto, era o lugar da epifania do Deus de Israel. E é precisamente na montanha, que os dois personagens que tinham visto Javé, Moisés e Elias, seriam as testemunhas de Jesus e da mensagem deste último. Pois Javé se apresentava na figura refulgente de Jesus, como se fosse o sol (Mt 17, 2).
2) Elias e Moisés conversavam com Jesus sobre a partida (êxodo) de Jesus que ia se realizar em Jerusalém. Logicamente é sobre a paixão e morte de Jesus. Ele já sabia dos fatos pela conversa em Cesareia de Filipe, após a confissão de Pedro (Mc 8, 31-33). Mas aqui, diante da escritura  inteira, representada por Moisés [=lei] e Elias [=profetas], Jesus quer deixar clara a finalidade de seu messianismo: Ele era o servo de Jahvé a dar sua vida pela salvação dos homens.
3) Era a mesma nuvem que acompanhou o tabernáculo e os israelitas no deserto. Era a SHEKINÁ, presença de Deus que também cobriu Moisés quando lhe entregou as tábuas da lei na montanha (Êx 24,15 e 40,34-38) e se manifestou nessa densa nuvem para que o povo acreditasse em Moisés (Êx 19,9). Dela começou a falar Jahvé e o povo escutou suas palavras. Era unicamente a voz do trovão ou eram palavras inteligíveis? O primeiro é certo e explicaria as palavras do povo: “O Senhor nosso Deus nos fez ver sua grandeza e ouvimos sua voz (trovão?) do meio do fogo (relâmpago?). Hoje vimos que Deus pode falar ao homem e deixá-lo vivo (Dt 5, 23). A nuvem do Sinai era densa ou escura, mas a do Tabor (suposto monte da transfiguração) seria branca e refulgente (Mt 17,5 e Mt 3,17), pois estamos diante da glória e não é tempo de temor.
4) O mandato lembra as palavras da epifania do Batismo, com um acréscimo importante, que constitui um mandato: OUVI-O. Na comparação com a teofania do Horeb podemos dizer que estas são as leis da nova aliança, resumidas num mandato único: A voz de Jesus é a voz do Pai. E para que todos os presentes tivessem em conta o mesmo, Jesus aparece como Moisés aparecia após falar com Deus: resplandecente em seu rosto (Êx 34, 29).

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